Colosso aprendeu que na vida não há lugar para os fracos da pior forma quando ainda era um filhote. As circunstâncias o ensinaram a brigar antes de abrir os olhos, lutando por um peito para não morrer de fome, depois pelos ossos e pela ração, então começou a lutar pelo espaço, pelo privilégio de cruzar e por fim terminou lutando pelo mero prazer de lutar. Ele havia se tornado um cão de briga, o melhor da cidade.
Já os irmãos de Colosso eram cães de rua, vira-latas comedores de restos, ao contrário dele que vivia cercado de cuidados. Colosso era um guerreiro, um bravo guerreiro. Uma noite por semana a fazenda para cães de briga em que vivia virava o epicentro das disputas regionais de rinha. Ele era posto numa pequena arena cercada por placas de concreto junto com outro cão, às vezes até maior que ele. Há dois anos que apenas ele saia vivo da arena canina. E sua fama de matador aumentava a cada mordida desferida. Nos bastidores diziam que não havia oponentes para o Colosso, apenas vitimas.
Colosso era um animal robusto, mas seu corpo coberto por cicatrizes era repulsivo. E apesar de receber muitos elogios nos dias de luta nos outros era tratado com frieza, eventualmente com crueldade. Cães de briga não podem ser tratados com carinho, o afeto os amolece, os tornam fracos e diminuem o lucro de seus donos. Para lucrar é necessário criar um campeão nutrindo o ódio e a sede por sangue no animal. Os treinadores do Colosso sabiam muito bem disso e caprichavam para que o amor jamais adentrasse na jaula dele.
Porém, senão havia um oponente a altura de Colosso dentro da aena, o mesmo não podia se dizer do lado de fora. Em sua jaula a morte o aguardava na forma do tempo que diariamente roubava suas energias. Com os homens o Tempo deve ser paciente e na maior parte das vezes somente após setenta anos golpeando-o consegue nocauteá-lo, mas com um cão é mais simples, mal se começa a persegui-los e já tombam. E com Colosso não seria diferente, e apesar de continuar invicto, as apostas contra ele aumentavam. Nem mesmo seu dono acreditava que pudesse durar muito tempo e resolveu se prevenir.
Certa amanhã o treinador de Colossos trouxe para o canil um novo integrante para a alcatéia do patrão. Era um cão quase tão grande quanto Colosso, mas algo nele não inspirava respeito aos demais cães, talvez fosse a ausência de cicatrizes em seu corpo ou seu olhar amistoso que entre os cães significava submissão.
O novato foi preso a uma corrente nos fundos de um pátio pavimentado em que a alcatéia se exercitava. Colosso estava solto com os outros cães e reconheceu logo o ritual. Era daquela forma que os cães novos eram apresentados a rotina do lugar. O treinador entregava o infeliz de presente para a alcatéia e ficava de longe com seus ajudantes prontos para intervir se preciso. Era um teste, o cão seria atacado e se não reagisse seria poupado pelos seus, mas não pelo treinador que o julgaria impróprio para a rinha e o sacrificaria. Agora se reagisse levaria uma surra coletiva, e se o treinador e seus ajudantes não o socorressem a tempo era certo que morreria; ainda mais com o Colosso entre os atacantes. Mas se sobrevivesse seria transformado também em um assassino – de qualquer forma haveria sangue em seu futuro.
Colosso encarava o estranho do outro lado do pátio e este o encarava de volta sem demonstrar temor algum. A cachorrada aguardou que o Colosso iniciasse o ataque, mas cansados de esperar decidiram avançar. Eles cercaram o novato e começaram a rosnar e a exibir seus dentes, mas o novato continuava entretido em seu duelo de olhares com o Colosso ignorando as presas que o rondavam. Então sem aviso um dos cães o atacou por trás seguido da alcatéia inteira. Apenas o Colosso não se envolveu na cachorragem. Ele preferiu observar de longe admirado o novato saltar de lado não só escapando do bote do primeiro atacante como também o enroscando na corrente, depois escolheu a garganta do atacante maior e cravou seus dentes nela. Ao mesmo tempo uma centena de dentes espetaram suas costas e pernas. Colosso não podia mais vê-lo em meio aquela confusão.
O treinador espantou os cães com um jato d´agua de alta pressão tingindo o pátio de rosa. E onde a pouco havia um amontoado de cães se via apenas o novato encharcado e ofegante com um cadáver em seus pés. Ele continuava a encarar o Colosso que finalmente desviou seu olhar abalado e voltou para sua jaula. O novato havia passado no teste, mas o treinador não era o único que ele havia conquistado.
Enquanto o prestigio do Colosso caia, um novo campeão surgia e o nome gravado em sua cólera era Rodes. Ele tinha um nome diferente, mas foi substituído pelo treinador como uma espécie de provocação ao antigo rei do canil. No entanto o Colosso não se incomodava com as sucessivas e esmagadoras vitórias de seu vizinho de jaula, por alguma razão que não compreendia não conseguia odiá-lo e isto sim o incomodava.
Colosso andava depressivo, não latia, comia e bebia pouco e dormia muito mal. Havia perdido o brilho e um bocado de peso o que era extremamente ruim para um lutador peso pesado. Na luta seguinte Colosso descobriu como alguns quilos de massa muscular podem fazer falta. O seu adversário, um cão bem mais jovem do que ele, aproveitou seu estado debilitado para massacrá-lo. Quase não conseguiram tira-lo da rinha vivo. Apesar de ter lutado bravamente não conseguiu evitar a primeira surra de sua vida. O seu treinador o jogou na jaula sem sequer lavar suas feridas com salmoura.
O velho herói curtia a derrota encolhido em um canto, mantinha a cabeça oculta entre as patas humilhado. Seus companheiros de canil tinham se convertido em um bando de hienas que zombavam de sua queda. Ele sabia que ao perder o respeito entre os cães havia perdido o direito a sobrevivência e de agora em diante teria que lutar como nunca. Porém, o mais grave era ter decepcionado seu dono, falta grave que geralmente era punida com pauladas ou um tiro fulminante no crânio.
À noite, quando apenas os pesadelos provocavam um grunhido ou outro no canil algo de inusitado ocorreu ao Colosso; através da grade em que estava encostado alguém lambia suas feridas solidariamente. Ele abriu um dos olhos confuso achando que fosse um sonho ficando ainda mais confuso ao perceber que se tratava de Rodes. O novato acariciava na medida do possível os ferimentos no lombo de Colosso. Por um instante os dois se entreolharam perplexos a espera de uma reação agressiva um do outro, no instante seguinte a tensão se dissipou e Rodes voltou a lamber o amigo enquanto este se ajeitava como podia para facilitar as lambidas pelos vãos da grade. Naquela noite, pela primeira vez em sua vida, Colosso teve sonhos bons.
Havia algo de novo na fazenda de cães e não demorou ao treinador e o dono perceberem. Seus campeões não queriam mais lutar e não se importavam mais em comandar a matilha. Colosso e Rodes viviam se cheirando e lambendo através das grades, às vezes em estado de frenesi. E quando eram soltos para se exercitar passavam o tempo disponível brincando um com o outro como filhotes. Este comportamento estava irritando os humanos e incomodando os outros cães. A amizade de Colosso e Rodes podia despertar o que havia de melhor neles, mas certamente tinha o efeito contrário com o público.
Pouco tempo após Colosso e Rodes se tornarem próximos o destino os separou. A traumática separação ocorreu em uma manhã em que por descuido de um ajudante do treinador a porta do canil ficou destrancada e Rodes convenceu Colosso a dar um passeio pela fazenda. Colosso não podia negar um pedido de seu parceiro e o acompanhou pelos campos além das grades do canil. Nenhum outro cão os acompanharam como se farejassem perigo; Colosso também sentia o cheiro de perigo, mas mesmo temeroso seguiu Rodes saltitante por meio de um pomar florido até colinas verdejantes salpicadas de vaquinhas. Ele sabia que a felicidade compartilhada com Rodes seria cobrada em algum momento, mas isso era problema para ser resolvido depois, agora queria apenas caçar borboletas pela grama alta com seu parceiro.
Cerca de uma hora mais tarde vários homens surgiram na orla do pomar chamando pelos cães fujões. Colosso e Rodes saltaram assustados de trás de uma moita enfeitada de florzinhas brancas, eles estavam ofegantes de tanto brincar, mas seus corações disparam era de medo da punição que receberiam quando retornassem ao canil.
Colosso virou em direção ao pomar e foi avistado pelos homens que invocaram os dois com palavrões. Ele ia obedecer aos chamados, mesmo sabendo que apanharia, mas de repente Rodes o deteve e o tentou convencer a fugir dali. Colosso olhou para o horizonte, a algumas centenas de metros havia um bosque onde a liberdade os aguardava, mas Colosso não sabia o que era a liberdade e mesmo a desejando ele a temia. Infelizmente bastaram segundos de sua indecisão para que um dos homens o alcança-se e o prendesse com uma coleira. Rodes podia ter fugido, mas preferiu se entregar e compartilhar do destino de seu amigo.
A surra foi exemplar. Quando a chuva de pauladas cessou Colosso pode ver que estava novamente só em sua jaula. Ficou dias trancado sem notícias de Rodes a espera de a qualquer momento aparecessem com uma espingarda para sacrificá-lo. Mas o tempo passou, suas feridas cicatrizaram, chegou a noite de uma nova rinha e nem sinal do Rodes. Colosso não tinha dúvidas, seu amigo fora sacrificado, fazia sentido, os problemas no canil haviam chegado com ele e provavelmente partiriam com ele. Uma dor tremenda tomou conta de Colosso e em seguida virou ódio, e finalmente desejo de matar.
Colosso foi levado para a rinha naquela mesma noite e destroçou seu oponente apesar de ser maior e mais jovem que ele. E assim continuou semana após semana, mês após mês. Colosso era novamente o campeão regional, mas as coisas não eram mais as mesmas, nunca mais seriam. Ele retornará a rinha muito mais selvagem e cruel. Colosso não só matava seus oponentes como os devorava ali mesmo se não fosse impedido. No canil vivia atacando seus colegas e ferindo-os gravemente. Ele atacava inclusive as fêmeas que eram apresentadas para cruzar. Nem por sexo ele se interessava mais, queria apenas morder e morder para expressar sua dor na carne alheia. O rancor havia transformado-o em um monstro. O treinador e o seu dono nunca foram tão felizes.
Contudo a grande luta para a qual Colosso havia treinado inconscientemente desde o ninho ainda estava por vir. Na noite anterior a última vez que Colosso entraria em uma rinha ele sonhou com Rodes. Seu parceiro das boas e más horas parecia belo como nunca, pelos vistosos e olhos brilhantes, correndo por uma colina coberta de nuvens branquinhas. Era o paraíso dos cães para onde Colosso iria em breve se reencontrar com Rodes, assim acreditava. Lágrimas rebeldes e gemidos doidos escapavam enquanto sonhava.
Na rinha daquela noite havia um público maior e mais entusiasmado, isto porque não se tratava de uma luta comum, mas o embate entre o campeão regional Colosso e o Triturador, talento emergente que vinha desafiá-lo. O Triturador surgiu a quase um ano e colecionava vitórias por onde passava, diziam até que era prole do próprio Colosso,o que deixava a luta mais interessante. Mas quando Colosso entrou no ringue ansioso para engolir vivo seu oponente, independente de que fosse seu filho ou pai, recebeu um golpe que o atordoou mais que qualquer paulada que tivesse tomado na vida. Diante dele, coberto por cicatrizes, completamente retalhado e com um olho vazado estava Rodes espumando pronto para avançar raivoso contra ele assim que seu treinador o soltasse.
Colosso ficou petrificado e não viu quando Rodes saltou sobre ele. O público jamais testemunhara uma surra como aquela. Rodes arrancava nacos de carne pulsante de Colosso e seus dentes trincavam os ossos do amigo sem dó. Colosso não reagia, apenas se esquivava canhestramente. Ele suplicava na língua dos cães que o amigo parasse, que acordasse do transe ao qual provavelmente fora induzido por meio de privações e doses generosas de agressão física. No entanto, vendo que o amigo o destroçaria com mais duas mordidas resolveu mudar de estratégia e com um golpe de mestre derrubou seu adversário já exausto de lutar e sem mais fôlego algum, prendeu-o no chão pressionando-o sua garganta com uma mordida poderosa. Colosso era maior, era mais pesado e mesmo arrebentado ainda era o cão de rinha número 1 de todos os tempos.
Rodes esperou que seu oponente rasga-se sua garganta ou o sufoca-se, ao invés disso o que sentiu foi uma lambida. Ele se levanta receoso e se esforçou para compreender o que esta acontecendo enquanto os homens ao redor da rinha deixam seus cigarros caírem de suas bocas. O silêncio é total no galpão onde se realiza a luta. Os cães estão se cheirando e aos poucos seus músculos vão relaxando e uma fagulha de reconhecimento recíproco reflete nos olhos de Rodes. Agora os cães se lambem freneticamente e rolam pela rinha. Donos, treinadores e apostadores observavam a cena chocados, mas em questão de segundos o espanto vira constrangimento e esta virá intolerância. Por fim os homens viram animais perante cães se comportando de forma tão humana.
O treinador de Colosso vai buscar uma espingarda para acabar com o que ele chama de “pouca vergonha” de “humilhação” enquanto os apostadores se dividem em zombar dos donos dos cães e reclamar do desfecho da luta. Rodes percebe que Colosso está na mira do treinador e sabe que seu companheiro não tem condições de fugir, então salta sobre a divisória que separa o público da pequena arena e derruba o treinador. O cão abre um rio de sangue na garganta do homem e a espingarda dispara atingindo alguém. As pessoas correm sem rumo trombando e pisoteando uns aos outros. Outro alguém liga para a polícia e o inferno está decretado.
Rodes e Colosso aproveitam a balburdia para fugir entre as pernas e distribuir algumas mordidas em canelas ao acaso. Eles atravessam o pomar, cruzam o pasto das vacas e adentram no bosque. E protegidos pelas raízes de uma árvore e acomodados confortavelmente em um colchão de folhas voltam a se lamber e a rolar felizes como filhotes bem amados.
Dizem que muitos anos depois ainda era possível ver um cão caolho e outro maior e manco caçando borboletas na orla do bosque ou uivando juntos para a Lua. E por incrível que pareça eles nunca mais brigaram. O resto é fofoca.
MLMAnjos
Espaço destinado para contos, fanfics,crônicas e comentários a respeito de Literatura, TV e Sétima Arte. Todos os textos são de autoria de MLMAnjos. Críticas e sugestões são bem vindas, principalmente quanto à correção gramátical.Obs:os textos postados aqui estão em constante reformulação.
Seja bem-vindo ao mundo de Acalanto!
Caso goste de algum dos textos postados por mim saiba que estão liberados para qualquer espécie de publicação, desde que se observe as seguintes condições: 1ª citar autor e fonte, 2ª não alterar o texto, 3ª apenas para fins culturais, 4ª não associar a ideologias e 5ª me informar antes.
Agradeço pelo tempo dedicado as minhas histórias que de agora em diante pode considerar como nossas.
Agradeço pelo tempo dedicado as minhas histórias que de agora em diante pode considerar como nossas.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Em breve...
"O melhor amigo do homem" - um conto sobre um amor improvável que desafia as convenções. Aguarde.
sábado, 26 de setembro de 2009
Comentário:Quanto dura o amor?
Eu me sinto tentado a invocar neste momento uma série de chavões críticos como "arrebatador,visceral e esteticamente impecável" para descrever o filme "Quanto dura o amor?", mas esta modesta obra-prima do cinema nacional não merece que lhe seja imposto o lugar-comum, do qual soube driblar muito bem. Porém, não irei me ater ao óbvio e não comentarei a originalidade e a sensibilidade explicita na abordagem a temas delicados como o Amor e suas pecularidades. Prefiro prestar homenagem a edição precisa e certeira, destaque para a introdução e para as cenas de amor que são simplesmente apaixonantes. Devo também reconhecer o desafio interpretativo dos atores visto que se trata de uma filmagem em que predomina o plano fechado e às vezes a câmera se aproxima tanto que se pode enxergar a alma dos atores, digo das personagens, pois além de vida as personagens também ganham alma,repare e verá. Uma pena que que no debate que seguiu a projeção não terem citado a "pedra angular" da fita, me refiro ao proprio condomínio e a Avenida Paulista que era um personagem a mais e não apenas um cenário,ao contrário, foi captado com genialidade e explorada ao máximo o potêncial dramático que S.Paulo tinha a oferecer.A fotografia é um espetáculo a parte (este clichê me escapou), a luz certa na ocasião certa, as cores dançam um tango com a trilha sonora daquelas vistas somente em filmes hollydianos. E por fim, o desfecho:bravo,honesto e inquietante -poesia visual que nos faz sonhar. Sinceramente, não sei quanto dura o Amor, mas posso afirmar que a contribuição que este filme deu a Sétima Arte é inestimável e durará enquanto houver seres sensíveis para aprecia-lo. Talvez, esta seja a tembém a resposta para quanto dura o amor.Provavelmente o Amor dura enquanto formos capazes de reconher algo tão belo e valioso e estivermos dispostos a amar.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
microconto: O bilhete premiado
Aquele bilhete de loteria em suas mãos valia a quantia exata da qual necessitava para salvar sua vida. Ele tremeu só de imaginar no que poderia comprar com aquele dinheiro:um carro, uma casa, talvez até um iate. Não! Primeiro tinha que honrar sua divida com a máfia, à noite o prazo terminava e no dia seguinte amanheceria com os peixes no rio. Todos os seus problemas seriam solucionados com aquele pedacinho de papel.Por isso, que foi com muito pesar que efetuou o pagamento para o homem que havia apresentado o bilhete. Depois fechou seu guichê para ir chorar no banheiro.
sábado, 5 de setembro de 2009
Conto: O dia em que Papai morreu
"Nada penetra mais fundo e envenena que uma palavra mal dita”.
Hermes Locke
Descuido matou Papai. Culpa dele não podar a língua. Era peixe a ser fisgado, sabido de todos quanto. Da feita, de oito completo, rondava os nove, meninote de tudo; porquerinha minha, no linguajar de mãe. Era de manhã, Sol sorrindo feito jumento. Eu e minha laia cumpria pena escolar. Não guardei o ano, lembro da lição, porém. Era artes, matéria exata pra gente arteira, de nossa espécie não existe mais; o mestre deu cabo a golpes de régua, feliz que só. E enquanto eu pelejava na carteira nos emendos e remendos de cola e papel, na roça papai labutava terra e pó banhando-se em suor. A cena era de ser bem essa.
Não tenho muito que dizer. Era dia seleto na escola, ironia, sexta de antevéspera dos pais. O mestre falou do valor do genitor para o bom filho, todos eram e juravam ser; disputava-se quem amava e respeitava mais seu velho, orgulhos infantis. No sítio, certeza que Papai pensava não em mim, era no meu pão, na minha roupa, no meu caderno que a mente e corpo de Papai se ocupava. Sua cabeça era da família, o mestre explicou. Papai penhorava seu coração pelos filhos e esposa, a gente agradecia. Papai era Homem, era Super. Que gostosura era ser filho de meu Papai!
Papai era rude, eu era rústico, combinávamos. Da ninhada só eu escapei das pancadas, predileto talvez. Mamãe amava todos com uma só medida. Papai tinha seu eleito, quanta briga. Meus irmãos desaluviavam em mim ciúme e frustração, depois Papai me vingava e a desgraceira espichava. Era tanto amor e ódio que descabia em casa nossa, choupana rasa a tombar de lado. Terminaram por demandar a mando do velho. Mamãe se debulha ainda hoje pelo nunca mais dos rebentos que pipocaram sertão a fora. Sina de mãe.
Tinha respeito por meu pai inté demais. Um mar sem fim de admiração. Beleza de se vê só. Inda hoje tenho viva as nesgas daquele amor, fagulhas guardadas debaixo das feridas.
Lembro da aula acabada, da jardineira me levando pro sítio, eu mais a molecada da rural numa algazarra. A gente ia feliz, satisfeitos de nossas feituras. Eu mesmo namorava o cartão que mais tarde passaria a meu velho. Pudesse dava algo de brilho, a ocasião pedia, mas presente melhor eu ficaria devendo. Vontade de agradar não faltava.
Na altura da porteira desci da condução e desembestei pelo corredor do cafezal. Naquele tempo se plantava café e muito. Longe vi pai e mãe, ele na derriça, ela na peneira. Tinha camaradas dando força também, mas deles nem, ficou meu pai e minha mãe na memória. Ainda cheiram o doce dos grãos maduros.
Eu encostei no velho, pedi atenção e ele o quê? Pro senhor pai, oferecendo meu coração dobrado com um “Feliz dia dos pais” gravado com canetinha. Ele pegou, examinou atento, procurava não sei o quê, de certo não encontrou. Sei que gesto e palavras seguintes não foram pensados, sei que o homem devia de estar mordido. E sei que nada disso era desculpa. “Toma, quando for grande e trabalhar volta com um maço de cédula, único papel que me interessa” me disse devolvendo o cartão e retornando a labuta. Fiquei plantado junto aos demais pés de café, um nada.
Mamãe tentou concertar, pediu o cartão pra si, elogiou, fez cafuné. A intenção foi boa e inútil, não podia salvar papai. O meu velho morreu ali. Ele se matou, deixando no lugar um senhor com quem venho me enfrentando desde então. O sujeito nunca atreveu por a mão em mim, ele sabe que sou coisa ruim e tenho a quem puxar. Ele conheceu meu finado pai, que deus o tenha.
Hermes Locke
Descuido matou Papai. Culpa dele não podar a língua. Era peixe a ser fisgado, sabido de todos quanto. Da feita, de oito completo, rondava os nove, meninote de tudo; porquerinha minha, no linguajar de mãe. Era de manhã, Sol sorrindo feito jumento. Eu e minha laia cumpria pena escolar. Não guardei o ano, lembro da lição, porém. Era artes, matéria exata pra gente arteira, de nossa espécie não existe mais; o mestre deu cabo a golpes de régua, feliz que só. E enquanto eu pelejava na carteira nos emendos e remendos de cola e papel, na roça papai labutava terra e pó banhando-se em suor. A cena era de ser bem essa.
Não tenho muito que dizer. Era dia seleto na escola, ironia, sexta de antevéspera dos pais. O mestre falou do valor do genitor para o bom filho, todos eram e juravam ser; disputava-se quem amava e respeitava mais seu velho, orgulhos infantis. No sítio, certeza que Papai pensava não em mim, era no meu pão, na minha roupa, no meu caderno que a mente e corpo de Papai se ocupava. Sua cabeça era da família, o mestre explicou. Papai penhorava seu coração pelos filhos e esposa, a gente agradecia. Papai era Homem, era Super. Que gostosura era ser filho de meu Papai!
Papai era rude, eu era rústico, combinávamos. Da ninhada só eu escapei das pancadas, predileto talvez. Mamãe amava todos com uma só medida. Papai tinha seu eleito, quanta briga. Meus irmãos desaluviavam em mim ciúme e frustração, depois Papai me vingava e a desgraceira espichava. Era tanto amor e ódio que descabia em casa nossa, choupana rasa a tombar de lado. Terminaram por demandar a mando do velho. Mamãe se debulha ainda hoje pelo nunca mais dos rebentos que pipocaram sertão a fora. Sina de mãe.
Tinha respeito por meu pai inté demais. Um mar sem fim de admiração. Beleza de se vê só. Inda hoje tenho viva as nesgas daquele amor, fagulhas guardadas debaixo das feridas.
Lembro da aula acabada, da jardineira me levando pro sítio, eu mais a molecada da rural numa algazarra. A gente ia feliz, satisfeitos de nossas feituras. Eu mesmo namorava o cartão que mais tarde passaria a meu velho. Pudesse dava algo de brilho, a ocasião pedia, mas presente melhor eu ficaria devendo. Vontade de agradar não faltava.
Na altura da porteira desci da condução e desembestei pelo corredor do cafezal. Naquele tempo se plantava café e muito. Longe vi pai e mãe, ele na derriça, ela na peneira. Tinha camaradas dando força também, mas deles nem, ficou meu pai e minha mãe na memória. Ainda cheiram o doce dos grãos maduros.
Eu encostei no velho, pedi atenção e ele o quê? Pro senhor pai, oferecendo meu coração dobrado com um “Feliz dia dos pais” gravado com canetinha. Ele pegou, examinou atento, procurava não sei o quê, de certo não encontrou. Sei que gesto e palavras seguintes não foram pensados, sei que o homem devia de estar mordido. E sei que nada disso era desculpa. “Toma, quando for grande e trabalhar volta com um maço de cédula, único papel que me interessa” me disse devolvendo o cartão e retornando a labuta. Fiquei plantado junto aos demais pés de café, um nada.
Mamãe tentou concertar, pediu o cartão pra si, elogiou, fez cafuné. A intenção foi boa e inútil, não podia salvar papai. O meu velho morreu ali. Ele se matou, deixando no lugar um senhor com quem venho me enfrentando desde então. O sujeito nunca atreveu por a mão em mim, ele sabe que sou coisa ruim e tenho a quem puxar. Ele conheceu meu finado pai, que deus o tenha.
Conto: Uma fábula kafkaniana
“Ser grande é ser incompreendido”.
Oscar Wilde
Sombras haviam lhe arrancado de sua cama de madrugada e o arrastado para o tribunal. O tempo era de terror e não se espantava com os métodos dos opressores para calar vozes como a sua; o que o surpreendeu foi terem lhe concedido um julgamento. No tribunal o palco estava armado para o espetáculo.
O homem foi acorrentado na cadeira do réu e teve certeza do papel que exerceria naquela noite. O júri estava em seu lugar, o guarda, o promotor e o juiz. Havia até um escrivão registrando cada bocejo feito no recinto – que não eram poucos –, faltava apenas o advogado de defesa.
Logo foi esclarecido que permitiriam ao réu se defender pessoalmente, o que de fato o agradou. As coisas não pareciam tão ruins assim afinal. Estava errado.
O julgamento começou com a descrição do caso e do acusado. O júri foi informado que se tratava do julgamento de Franz Kafka exímio, porém, soturno escritor que assombrava a língua alemã com suas obras secretas. E por sua vez, Kafka soube qual fora seu crime. Era acusado de bruxaria e homicídio culposo. Segundo o promotor o réu havia transformado durante o sono um pobre e infeliz caixeiro viajante chamado Gregor Sanches em um inseto rastejante; e que por causa disso foi morto a vassouradas por uma empregada. Sem falar na família da vitima internada em um sanatório gerando gastos aos cofres públicos por culpa de um monstro maior chamado Franz Kafka. O promotor cuspia, não, escarrava sempre que pronunciava o nome do réu causando asco no júri que não conseguia si quer fitar o réu tamanha repulsa.
E para provar que suas acusações eram fundamentadas o promotor mandou trazerem o cadáver de Gregor Sanches. O próprio Kafka não pode deixar de se horrorizar com a criatura esmagada e aos pedaços, oferecida à platéia. Era uma espécie de aberração infernal. O cruzamento mal sucedido entre homem e pesadelo.
O mais estranho era que Kafka reconhecia a criatura. Sim, se lembrava dela, era uma de suas má-criações. Ela não existia, ou não devia. Mas as estranhezas não haviam terminado. Por ordem do promotor o júri digeriu as provas do crime devorando cada perna e antena de Gregor Sanches. Kafka concluiu que estava sendo julgado por loucos ou era ele que enlouquecera. O que era bem possível.
O réu teve a oportunidade de se defender e fez o melhor em tais circunstâncias. Ele se esforçou para despertar o bom senso de seus ouvintes, para provar que não podia ferir ninguém com palavras, mas neste ponto começou a duvidar de si mesmo. Tinha que admitir que seus textos não eram inofensivos, e por isso mesmo os guardava em uma gaveta trancada e não estava certo que algum dia os publicaria. E quando percebeu que de qualquer forma seria inútil argumentar parou e o júri acordou, pois haviam dormido durante toda a defesa.
O Juiz também estava exausto e entediado e decidiu acabar logo. Perguntou ao júri qual era o veredicto. Inocente! Gritaram e foram embora para suas casas. E o juiz martelou a decisão. Absolvido de todas as acusações e livre para todo o sempre. E o promotor disse amém, aleluia! E os restantes saíram para comemorar. Na cadeira, acorrentado ficou o réu sem entender nada, afogado em um misto de alívio e confusão.
O carrasco entrou, libertou o prisioneiro e o levou para o pátio onde uma forca esperava por ele. E enquanto Kafka estrebuchava na corda perguntava ao seu algoz:
“Mas por quê? Por quê?”
E o carrasco respondia:
“Você sabe, você sabe”.
E para Kafka não houve moral alguma a ser aprendida, apenas a certeza de que estamos todos condenados a permanecer na forca até que faça sentido.
Oscar Wilde
Sombras haviam lhe arrancado de sua cama de madrugada e o arrastado para o tribunal. O tempo era de terror e não se espantava com os métodos dos opressores para calar vozes como a sua; o que o surpreendeu foi terem lhe concedido um julgamento. No tribunal o palco estava armado para o espetáculo.
O homem foi acorrentado na cadeira do réu e teve certeza do papel que exerceria naquela noite. O júri estava em seu lugar, o guarda, o promotor e o juiz. Havia até um escrivão registrando cada bocejo feito no recinto – que não eram poucos –, faltava apenas o advogado de defesa.
Logo foi esclarecido que permitiriam ao réu se defender pessoalmente, o que de fato o agradou. As coisas não pareciam tão ruins assim afinal. Estava errado.
O julgamento começou com a descrição do caso e do acusado. O júri foi informado que se tratava do julgamento de Franz Kafka exímio, porém, soturno escritor que assombrava a língua alemã com suas obras secretas. E por sua vez, Kafka soube qual fora seu crime. Era acusado de bruxaria e homicídio culposo. Segundo o promotor o réu havia transformado durante o sono um pobre e infeliz caixeiro viajante chamado Gregor Sanches em um inseto rastejante; e que por causa disso foi morto a vassouradas por uma empregada. Sem falar na família da vitima internada em um sanatório gerando gastos aos cofres públicos por culpa de um monstro maior chamado Franz Kafka. O promotor cuspia, não, escarrava sempre que pronunciava o nome do réu causando asco no júri que não conseguia si quer fitar o réu tamanha repulsa.
E para provar que suas acusações eram fundamentadas o promotor mandou trazerem o cadáver de Gregor Sanches. O próprio Kafka não pode deixar de se horrorizar com a criatura esmagada e aos pedaços, oferecida à platéia. Era uma espécie de aberração infernal. O cruzamento mal sucedido entre homem e pesadelo.
O mais estranho era que Kafka reconhecia a criatura. Sim, se lembrava dela, era uma de suas má-criações. Ela não existia, ou não devia. Mas as estranhezas não haviam terminado. Por ordem do promotor o júri digeriu as provas do crime devorando cada perna e antena de Gregor Sanches. Kafka concluiu que estava sendo julgado por loucos ou era ele que enlouquecera. O que era bem possível.
O réu teve a oportunidade de se defender e fez o melhor em tais circunstâncias. Ele se esforçou para despertar o bom senso de seus ouvintes, para provar que não podia ferir ninguém com palavras, mas neste ponto começou a duvidar de si mesmo. Tinha que admitir que seus textos não eram inofensivos, e por isso mesmo os guardava em uma gaveta trancada e não estava certo que algum dia os publicaria. E quando percebeu que de qualquer forma seria inútil argumentar parou e o júri acordou, pois haviam dormido durante toda a defesa.
O Juiz também estava exausto e entediado e decidiu acabar logo. Perguntou ao júri qual era o veredicto. Inocente! Gritaram e foram embora para suas casas. E o juiz martelou a decisão. Absolvido de todas as acusações e livre para todo o sempre. E o promotor disse amém, aleluia! E os restantes saíram para comemorar. Na cadeira, acorrentado ficou o réu sem entender nada, afogado em um misto de alívio e confusão.
O carrasco entrou, libertou o prisioneiro e o levou para o pátio onde uma forca esperava por ele. E enquanto Kafka estrebuchava na corda perguntava ao seu algoz:
“Mas por quê? Por quê?”
E o carrasco respondia:
“Você sabe, você sabe”.
E para Kafka não houve moral alguma a ser aprendida, apenas a certeza de que estamos todos condenados a permanecer na forca até que faça sentido.
Crônica: Reflexões Sobre um Espelho
“A arte tem necessidade de solidão, ou de miséria, ou de paixão. É uma flor das rochas, que deseja vento áspero e terreno rude.”
Dumas Filho
“Talvez não possa viver de sonhos, mas posso tentar.”
Hermes Locke
Permitam-me que lhes conte a respeito de um jovem que conheço muito bem. Eu me lembro de quando ele tinha dez anos e leu seu primeiro livro, não que fosse realmente o primeiro que pões os olhos, de certo houve outros sendo que era um leitor precoce, mas não tenho dúvidas de que “Vice-versa” representou o ingresso dele no universo literário. O título em questão era uma coletânea de adaptações infanto-juvenis de clássicos da literatura universal acompanhada de um resumo do texto original; ali teve seu primeiro contato com “Fausto” na pele de um menino que faz um trato com o vírus do sarampo para não ir à escola. Além de “O Banquete” de Platão, “Dom Quixote” e outros títulos famosos. Foi amor à primeira leitura.
Nunca me esquecerei de como ele sugava os livros se embriagando com a seiva deles. Lembro de como voltou à biblioteca e pediu à bibliotecária que o deixasse tomar emprestados os livros grossos, não que esnobasse os finos e mais infantis, mas já os tinha lido todos. E naquele dia foi para casa saborear “Caçadas de Pedrinho”. Seis meses depois havia terminado a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo, mais seis meses “Cidades Mortas” e “A negrinha” faziam parte de seu repertório. Os livros de Monteiro Lobato deram inicio a uma existência dedicada à leitura.
Porém, não foi apenas o desejo de ler que despertou no garoto, ele também passou a sentir uma tremenda necessidade de escrever. Infelizmente, a gramática dele era péssima e para piorar demonstrava sofrer de uma leve dislexia. Os seus pais não apoiavam que escrevesse, parecia coisa de vagabundo, artifício de gente preguiçosa que não quer trabalhar de verdade.
Mas em certa ocasião, na quinta ou sexta série, uma professora de português chamada Gisele, ao invés de apontar os seus deslizes gramaticais, o chamou para mais perto e lhe disse: “ Você já pensou em ser escritor? Talvez, histórias fantásticas e livros para crianças.” O garoto sorriu e disse que a idéia o agradava, mentira! A possibilidade de se tornar um escritor o extasiava. Não sei se a Prof.a Gisele sabia mas naquele momento ela plantou uma sementinha de ouro em seu aluno.
Vida de escritor não é fácil, principalmente porque alguém inventou que escritor bom é escritor morto, não que seja lei, mas é tradição entregar o louro aos defuntos. Mesmo os que alcançam o reconhecimento enquanto caminham sobre a terra só atingirão a glória quando estiverem por debaixo da terra. Mas não era o Sol que o garoto buscava, somente um pouco de luz. Ele sentia que poderia dar bons frutos se encontrasse em meio à floresta uma brecha pela qual pudesse crescer. Ele tinha algo a dizer, aprenderia a dizê-lo com paixão e estava convicto que se escrevesse com sinceridade e carinho não lhe faltariam leitores.
A necessidade de se comunicar é inerente ao ser humano, mas enquanto a maioria se contenta com os níveis mais imediatos da comunicação, aqueles que aspiram à escrita são obrigados a explorar ao máximo o potencial da linguagem verbal, e muitas vezes, todas as matrizes da linguagem, tanto humana quanto da natureza. Pois um artista completo dialoga com o Universo. O garoto não perdeu tempo e não desenvolveu apenas técnica com o passar dos anos, mas também uma corcunda curvando-se sobre cadernos e mais tarde computadores e sob o peso dos livros em sua mochila.
Ele não era mais um menino, cresceu e entrou na faculdade na fé de que estudar literatura faria dele um escritor. Passaram-se sete anos, dos quais investiu seis anos e meio na criação de um romance que narrarei a seguir.
“Esta não é uma bela história, não como as que eu costumava ler quando criança. Mas se me derem à oportunidade provarei que mesmo o feio pode ser belo a sua maneira.”
Curto? Pois é, foi o mais próximo que aquele garotinho chegou de realizar o seu sonho de gerar o seu próprio romance. Se eu fosse ele acho que teria desistido e abortado este sonho. Livros parecem dar mais trabalho que filhos, melhor não escrevê-los, mas se não escrevê-los como sabê-lo?
Há muitos motivos para não ter escrito nada ainda, talvez porque é exigente de mais consigo, ou é inseguro, pode ser que a época não seja a mais apropriada, ele ainda não encontrou seu estilo, ou na pior das hipóteses não leva jeito pra ser um Autor, o que não é desculpa para deixar de publicar qualquer coisa, as livrarias e bibliotecas estão repletas de escritores funcionais. Qual o problema então?! Tenho uma hipótese, eu o observo a muito tempo e começo a desconfiar que aquilo que chama de sonho na verdade é uma obsessão. Bem, quem viver lerá.
Por enquanto, ele segue seu caminho sempre tenso captando o mais sutil sinal poético por onde passa, colecionando palavras aqui e ali, experimentando combina-las aqui e acolá. Sua palavra predileta é “vulnerável” ela o faz se sentir invencível. Mas não se restringe a colecionar verbetes, também adota sentimentos feridos que topa em suas andanças. Ele apresenta a solidão de um à solidão de outro e forma um solidário. Ele costura corações partidos com fiapos de amor eterno, oferece abrigo a uma palavra amiga e colhe os frutos da união. E do ódio virado pelo avesso faz uma paixão, da ilusão esperança e da morte ressurreição. Mas nada o comove mais que um sonho abandonado na sarjeta, seja novo ou antigo, sempre desnutrido e com frio. Ele tem um lugar especial em suas histórias para cada dádiva ou maldição que encontra no mundo. Um lugar em construção que um dia abrirá para visitação.
A Musa parece ignorá-lo, mas ele é paciente e irá esperá-la o quanto for necessário. Ele começa a polir o texto a sua frente, limpando o de cada adjetivo desnecessário, livrando das incoerências, ávido para vê-la através da página. O meu menino vê sua silhueta sob a mais profunda camada do texto e continua a polir para descobri-la. E ele a chama.
Mas ainda não será hoje que escreverá um livro que traduza seus pensamentos, expresse seus sentimentos e liberte seu espírito. Um livro cristalino que reflita a beleza interior sua e de seus leitores. Um livro digno de seus olhos.
Dumas Filho
“Talvez não possa viver de sonhos, mas posso tentar.”
Hermes Locke
Permitam-me que lhes conte a respeito de um jovem que conheço muito bem. Eu me lembro de quando ele tinha dez anos e leu seu primeiro livro, não que fosse realmente o primeiro que pões os olhos, de certo houve outros sendo que era um leitor precoce, mas não tenho dúvidas de que “Vice-versa” representou o ingresso dele no universo literário. O título em questão era uma coletânea de adaptações infanto-juvenis de clássicos da literatura universal acompanhada de um resumo do texto original; ali teve seu primeiro contato com “Fausto” na pele de um menino que faz um trato com o vírus do sarampo para não ir à escola. Além de “O Banquete” de Platão, “Dom Quixote” e outros títulos famosos. Foi amor à primeira leitura.
Nunca me esquecerei de como ele sugava os livros se embriagando com a seiva deles. Lembro de como voltou à biblioteca e pediu à bibliotecária que o deixasse tomar emprestados os livros grossos, não que esnobasse os finos e mais infantis, mas já os tinha lido todos. E naquele dia foi para casa saborear “Caçadas de Pedrinho”. Seis meses depois havia terminado a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo, mais seis meses “Cidades Mortas” e “A negrinha” faziam parte de seu repertório. Os livros de Monteiro Lobato deram inicio a uma existência dedicada à leitura.
Porém, não foi apenas o desejo de ler que despertou no garoto, ele também passou a sentir uma tremenda necessidade de escrever. Infelizmente, a gramática dele era péssima e para piorar demonstrava sofrer de uma leve dislexia. Os seus pais não apoiavam que escrevesse, parecia coisa de vagabundo, artifício de gente preguiçosa que não quer trabalhar de verdade.
Mas em certa ocasião, na quinta ou sexta série, uma professora de português chamada Gisele, ao invés de apontar os seus deslizes gramaticais, o chamou para mais perto e lhe disse: “ Você já pensou em ser escritor? Talvez, histórias fantásticas e livros para crianças.” O garoto sorriu e disse que a idéia o agradava, mentira! A possibilidade de se tornar um escritor o extasiava. Não sei se a Prof.a Gisele sabia mas naquele momento ela plantou uma sementinha de ouro em seu aluno.
Vida de escritor não é fácil, principalmente porque alguém inventou que escritor bom é escritor morto, não que seja lei, mas é tradição entregar o louro aos defuntos. Mesmo os que alcançam o reconhecimento enquanto caminham sobre a terra só atingirão a glória quando estiverem por debaixo da terra. Mas não era o Sol que o garoto buscava, somente um pouco de luz. Ele sentia que poderia dar bons frutos se encontrasse em meio à floresta uma brecha pela qual pudesse crescer. Ele tinha algo a dizer, aprenderia a dizê-lo com paixão e estava convicto que se escrevesse com sinceridade e carinho não lhe faltariam leitores.
A necessidade de se comunicar é inerente ao ser humano, mas enquanto a maioria se contenta com os níveis mais imediatos da comunicação, aqueles que aspiram à escrita são obrigados a explorar ao máximo o potencial da linguagem verbal, e muitas vezes, todas as matrizes da linguagem, tanto humana quanto da natureza. Pois um artista completo dialoga com o Universo. O garoto não perdeu tempo e não desenvolveu apenas técnica com o passar dos anos, mas também uma corcunda curvando-se sobre cadernos e mais tarde computadores e sob o peso dos livros em sua mochila.
Ele não era mais um menino, cresceu e entrou na faculdade na fé de que estudar literatura faria dele um escritor. Passaram-se sete anos, dos quais investiu seis anos e meio na criação de um romance que narrarei a seguir.
“Esta não é uma bela história, não como as que eu costumava ler quando criança. Mas se me derem à oportunidade provarei que mesmo o feio pode ser belo a sua maneira.”
Curto? Pois é, foi o mais próximo que aquele garotinho chegou de realizar o seu sonho de gerar o seu próprio romance. Se eu fosse ele acho que teria desistido e abortado este sonho. Livros parecem dar mais trabalho que filhos, melhor não escrevê-los, mas se não escrevê-los como sabê-lo?
Há muitos motivos para não ter escrito nada ainda, talvez porque é exigente de mais consigo, ou é inseguro, pode ser que a época não seja a mais apropriada, ele ainda não encontrou seu estilo, ou na pior das hipóteses não leva jeito pra ser um Autor, o que não é desculpa para deixar de publicar qualquer coisa, as livrarias e bibliotecas estão repletas de escritores funcionais. Qual o problema então?! Tenho uma hipótese, eu o observo a muito tempo e começo a desconfiar que aquilo que chama de sonho na verdade é uma obsessão. Bem, quem viver lerá.
Por enquanto, ele segue seu caminho sempre tenso captando o mais sutil sinal poético por onde passa, colecionando palavras aqui e ali, experimentando combina-las aqui e acolá. Sua palavra predileta é “vulnerável” ela o faz se sentir invencível. Mas não se restringe a colecionar verbetes, também adota sentimentos feridos que topa em suas andanças. Ele apresenta a solidão de um à solidão de outro e forma um solidário. Ele costura corações partidos com fiapos de amor eterno, oferece abrigo a uma palavra amiga e colhe os frutos da união. E do ódio virado pelo avesso faz uma paixão, da ilusão esperança e da morte ressurreição. Mas nada o comove mais que um sonho abandonado na sarjeta, seja novo ou antigo, sempre desnutrido e com frio. Ele tem um lugar especial em suas histórias para cada dádiva ou maldição que encontra no mundo. Um lugar em construção que um dia abrirá para visitação.
A Musa parece ignorá-lo, mas ele é paciente e irá esperá-la o quanto for necessário. Ele começa a polir o texto a sua frente, limpando o de cada adjetivo desnecessário, livrando das incoerências, ávido para vê-la através da página. O meu menino vê sua silhueta sob a mais profunda camada do texto e continua a polir para descobri-la. E ele a chama.
Mas ainda não será hoje que escreverá um livro que traduza seus pensamentos, expresse seus sentimentos e liberte seu espírito. Um livro cristalino que reflita a beleza interior sua e de seus leitores. Um livro digno de seus olhos.
Conto: O Amor de Odradek
“A palavra foi concedida ao homem para disfarçar seus sentimentos.”
Talleyrand
Hoje acordei com uma vontade louca de morrer, mas só um pouquinho. As oito a Novela continua e o que seria dela sem mim? E esse sentimento que não pára! Agitou-se dentro da minha cabeça, fez trouxa da minha alma, revirou a noite toda, estômago e travesseiro; ela dilacerou meu coração e amanheceu presa na garganta – uma bagunça. Vou levá-la ao doutor, ele dirá o que a tem incomodado.
No consultório fui informado que o problema sou eu, o que fazer? Qualquer coisa receitou o doutor, essas dores passam, queira ou não, passam, mas ficarão os rastros.
Levei o meu sentimento para assistir corridas de hipopótamos, foi divertido, mas demorado. Já era hora de almoçar e o sentimento me sugava. Peguei meu carro e fui para um lago fora da cidade planejando afogar meu sentimento, mas ele me cegou e rolamos por uma ribanceira.
Eu não morri, porque quedas não matam quem sobrevive a uma paixão como esta. Pedi ao meu novo doutor que extirpasse o sentimento de mim, mas ele explicou que era eu que não queria largá-lo e me enviou a um padre. O seu caso é sério, recomendo um belo casamento – me disse.
Casei e o sentimento morreu. Eu o enterrei no peito e agora sigo a deriva no que se convencionou chamar de vida, certo de que poeta bom é poeta morto.
Talleyrand
Hoje acordei com uma vontade louca de morrer, mas só um pouquinho. As oito a Novela continua e o que seria dela sem mim? E esse sentimento que não pára! Agitou-se dentro da minha cabeça, fez trouxa da minha alma, revirou a noite toda, estômago e travesseiro; ela dilacerou meu coração e amanheceu presa na garganta – uma bagunça. Vou levá-la ao doutor, ele dirá o que a tem incomodado.
No consultório fui informado que o problema sou eu, o que fazer? Qualquer coisa receitou o doutor, essas dores passam, queira ou não, passam, mas ficarão os rastros.
Levei o meu sentimento para assistir corridas de hipopótamos, foi divertido, mas demorado. Já era hora de almoçar e o sentimento me sugava. Peguei meu carro e fui para um lago fora da cidade planejando afogar meu sentimento, mas ele me cegou e rolamos por uma ribanceira.
Eu não morri, porque quedas não matam quem sobrevive a uma paixão como esta. Pedi ao meu novo doutor que extirpasse o sentimento de mim, mas ele explicou que era eu que não queria largá-lo e me enviou a um padre. O seu caso é sério, recomendo um belo casamento – me disse.
Casei e o sentimento morreu. Eu o enterrei no peito e agora sigo a deriva no que se convencionou chamar de vida, certo de que poeta bom é poeta morto.
Conto: Old Woman River...
“– Às vezes me arrependo de ter conhecido você – eu disse. – Não gosto de dizer isso, mas é a verdade. Antes de você eu não sabia como era estar perto de gente deprimida.
(...)
– Estou cansada de viver e tenho medo de morrer – Glória disse.
– Ora, essa é uma idéia legal para uma música – disse James Bates, que escutou tudo. –Você podia compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você podia chamar de Old Man River...”
Mas não se matam cavalos?
Horace McCoy
“A mente humana é um rio por vezes turbulento que deságua em si mesmo. Portanto, não se espante se ao tentar compreender alguém se sinta preso em um turbilhão, pois se lembre que você também és um rio, turbulento ou não.”
Hermes Locke
Uma coisa não se pode dizer de Ofélia, que não fosse determinada. Prova disso foi o episódio da ponte, na qual demonstrou muita determinação em se conservar viva. Os detalhes a seguir me foram cedidos por um conhecido da equipe forense que investigou o caso.
Na noite de sábado passado, por volta das onze horas, Ofélia, solteira de 39 anos, operadora de telemarketing, residente de uma kitnet no Centro foi vista saindo de seu prédio com uma sacola de feira indo a pé à ponte que liga o Centro com o “Bairro do Socorro”.
Em sua residência não foi encontrada uma carta de suicídio propriamente dita, mas os escritos de seu diário revelaram claramente que sofria de depressão. Segundo o diário houve tentativas anteriores de suicídio comprovadas após consultarem seus registros médicos.
Os investigadores forenses também descobriram um fragmento de papel queimado onde se podia ler somente: “...no fim da estrada encontro uma placa de Pare...” o que poderia ser tanto o trecho de uma canção ou de uma carta de suicídio. Especialistas trabalham na recuperação do restante do bilhete confiantes que ele revele o que desencadeou a fatalidade.
Outra pista que auxiliou na reconstrução dos acontecimentos foi encontrada no lixo de sua residência; um comprovante de compra da “Maratona”, loja de artigos esportivos, em que constava a corda de nylon e o alteres empregados na tentativa de suicídio. O atendente da loja se lembrou da venda feita a Ofélia na tarde daquele mesmo dia. Ela havia lhe pedido dois metros de uma corda barata, mas resistente e um peso de trinta quilos que ela levou embora com aparente dificuldade.
A família e os conhecidos de Ofélia informaram que desde a infância ela era uma pessoa desmotivada e de baixa estima, não tinha ânimo para lutar por seus sonhos que, aliás, se os tinha não manifestava. Infelizmente, como seu estado melancólico não chegava a incomodar terceiros sua condição emocional precária foi negligenciada por todos ao seu redor. Quando teve suas primeiras crises graves chegando a tomar overdoses de antidepressivos já vivia isolada e incomunicável impossibilitando uma intervenção. Os vizinhos a descreveram como aérea e incapaz de ferir uma mosca e, portanto, não fosse pela câmera de trânsito ter flagrado o salto, tomariam por um boato maldoso.
Na segunda à noite um jornal sensacionalista exibiu um resumo da gravação feita pela já citada câmera de vigilância. A imagem era preta e branca e não enfocava o ponto de onde Ofélia saltou, pegando-o de relance. As sombras também dificultavam a visão, mas com ajuda de truques de edição o jornal aperfeiçoou a gravação.
O relógio digital no canto inferior esquerdo da tela marca 23:11h quando Ofélia surge caminhando até o meio da ponte. A vemos pular a barreira de segurança, tirar a corda e o peso da sacola, amarrar a corda no peso e testar o nó balançando o peso como um pêndulo, o nó foi aprovado. O próximo passo foi enrolar a outra ponta da corda no pescoço e erguer o peso acima da cabeça para lançá-lo no rio. Mas o alteres deve tê-la desequilibrado derrubando-a da ponte um segundo antes do planejado. A gravação não dispunha de som, mas dava para imaginar que Ofélia despencou gritando e que seu grito foi cortado de repente quando se viu pendurada na ponte. Ao cair de suas mãos o peso se prendeu numa saliência da ponte enforcando Ofélia com a corda.
Especialistas alegam que foi um milagre não ter quebrado o pescoço, mas aquele foi apenas o segundo de uma série de milagres, de certo que o primeiro foi o peso ter escapado de suas mãos ou a teria arrastado para o leito do rio. O terceiro milagre foi ter sobrevivido por dois minutos pendurada pelo pescoço a se debater no ar. A gravação saltou no tempo para que não fossemos obrigados a testemunhar cada segundo do estrangulamento de Ofélia. E por mais que se esforçasse sabíamos que ela não se livraria da corda, mas ao final dos dois minutos a corda se soltou do peso e Ofélia foi engolida pelas águas negras do rio. Foi o quarto milagre.
Havia chovido muito naquele dia e o nível do rio aumentara quase um metro. A água parecia petróleo e mesmo pela gravação podia se perceber uma quantidade abundante de lixo na superfície. Caso Ofélia não morresse afogada, morreria intoxicada. Mas nem uma coisa, nem outra. Após segundos de suspense a suicida ressurgiu nadando rumo a uma das margens. Conhecidos haviam garantido que Ofélia não sabia nadar, que se quer havia entrado em uma piscina em toda a vida. Neste caso estávamos diante do quinto milagre. Porém, o round mais emocionante em sua luta pela sobrevivência ainda estava por vir.
Quando Ofélia alcançou a margem e tentou se levantar coberta de lodo caiu de costas rolando de volta para o rio. Provavelmente a corda ainda presa em seu pescoço enroscara em um tronco, um pneu ou nos dedos da Morte. E por mais três vezes tentou sair do rio, mas este a puxava de volta em um jogo macabro de cabo de guerra, de um lado o Rio turvo e gigantesco e do outro, Ofélia, a mulher mais fraca e desmotivada do planeta. Pois na quarta tentativa ela o venceu caindo de boca no barranco enlameado que margeava o rio. O sexto milagre.
Nós vimos à mulher escalar o barranco e se deitar de costas sobre uma moita de capim navalha, planta que cobre as margens do rio. O seu corpo não se movia o que nos fez pensar que havia nadado tão bravamente para morrer de exaustão. De súbito um espasmo, ela respirava, arfava, vivia! Os movimentos de seu peito se estabilizaram e nós a acompanhamos se arrastar para fora do campo de visão da câmera.
O ancora que comentava a gravação disse que aquela foi uma lição de perseverança para todos em casa que seguiram a odisséia de Ofélia. Mas o melhor estava por vir, enfatizou com um tom melodramático.
Passaram uma nova gravação parecida com a anterior, contudo, o relógio digital marcava vinte minutos depois. Vimos à mulher retornar ao ponto do qual caiu e amarrar a corda novamente no alteres e no pescoço. Nós bem apertados, mergulhou de cabeça abraçada ao peso. Passaram-se os minutos e nada veio à tona. O rio seguia seu curso indiferente, e nós o nosso confusos.
Os mergulhadores prosseguem com a busca. Mas Ofélia parece determinada a não ser encontrada.
(...)
– Estou cansada de viver e tenho medo de morrer – Glória disse.
– Ora, essa é uma idéia legal para uma música – disse James Bates, que escutou tudo. –Você podia compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você podia chamar de Old Man River...”
Mas não se matam cavalos?
Horace McCoy
“A mente humana é um rio por vezes turbulento que deságua em si mesmo. Portanto, não se espante se ao tentar compreender alguém se sinta preso em um turbilhão, pois se lembre que você também és um rio, turbulento ou não.”
Hermes Locke
Uma coisa não se pode dizer de Ofélia, que não fosse determinada. Prova disso foi o episódio da ponte, na qual demonstrou muita determinação em se conservar viva. Os detalhes a seguir me foram cedidos por um conhecido da equipe forense que investigou o caso.
Na noite de sábado passado, por volta das onze horas, Ofélia, solteira de 39 anos, operadora de telemarketing, residente de uma kitnet no Centro foi vista saindo de seu prédio com uma sacola de feira indo a pé à ponte que liga o Centro com o “Bairro do Socorro”.
Em sua residência não foi encontrada uma carta de suicídio propriamente dita, mas os escritos de seu diário revelaram claramente que sofria de depressão. Segundo o diário houve tentativas anteriores de suicídio comprovadas após consultarem seus registros médicos.
Os investigadores forenses também descobriram um fragmento de papel queimado onde se podia ler somente: “...no fim da estrada encontro uma placa de Pare...” o que poderia ser tanto o trecho de uma canção ou de uma carta de suicídio. Especialistas trabalham na recuperação do restante do bilhete confiantes que ele revele o que desencadeou a fatalidade.
Outra pista que auxiliou na reconstrução dos acontecimentos foi encontrada no lixo de sua residência; um comprovante de compra da “Maratona”, loja de artigos esportivos, em que constava a corda de nylon e o alteres empregados na tentativa de suicídio. O atendente da loja se lembrou da venda feita a Ofélia na tarde daquele mesmo dia. Ela havia lhe pedido dois metros de uma corda barata, mas resistente e um peso de trinta quilos que ela levou embora com aparente dificuldade.
A família e os conhecidos de Ofélia informaram que desde a infância ela era uma pessoa desmotivada e de baixa estima, não tinha ânimo para lutar por seus sonhos que, aliás, se os tinha não manifestava. Infelizmente, como seu estado melancólico não chegava a incomodar terceiros sua condição emocional precária foi negligenciada por todos ao seu redor. Quando teve suas primeiras crises graves chegando a tomar overdoses de antidepressivos já vivia isolada e incomunicável impossibilitando uma intervenção. Os vizinhos a descreveram como aérea e incapaz de ferir uma mosca e, portanto, não fosse pela câmera de trânsito ter flagrado o salto, tomariam por um boato maldoso.
Na segunda à noite um jornal sensacionalista exibiu um resumo da gravação feita pela já citada câmera de vigilância. A imagem era preta e branca e não enfocava o ponto de onde Ofélia saltou, pegando-o de relance. As sombras também dificultavam a visão, mas com ajuda de truques de edição o jornal aperfeiçoou a gravação.
O relógio digital no canto inferior esquerdo da tela marca 23:11h quando Ofélia surge caminhando até o meio da ponte. A vemos pular a barreira de segurança, tirar a corda e o peso da sacola, amarrar a corda no peso e testar o nó balançando o peso como um pêndulo, o nó foi aprovado. O próximo passo foi enrolar a outra ponta da corda no pescoço e erguer o peso acima da cabeça para lançá-lo no rio. Mas o alteres deve tê-la desequilibrado derrubando-a da ponte um segundo antes do planejado. A gravação não dispunha de som, mas dava para imaginar que Ofélia despencou gritando e que seu grito foi cortado de repente quando se viu pendurada na ponte. Ao cair de suas mãos o peso se prendeu numa saliência da ponte enforcando Ofélia com a corda.
Especialistas alegam que foi um milagre não ter quebrado o pescoço, mas aquele foi apenas o segundo de uma série de milagres, de certo que o primeiro foi o peso ter escapado de suas mãos ou a teria arrastado para o leito do rio. O terceiro milagre foi ter sobrevivido por dois minutos pendurada pelo pescoço a se debater no ar. A gravação saltou no tempo para que não fossemos obrigados a testemunhar cada segundo do estrangulamento de Ofélia. E por mais que se esforçasse sabíamos que ela não se livraria da corda, mas ao final dos dois minutos a corda se soltou do peso e Ofélia foi engolida pelas águas negras do rio. Foi o quarto milagre.
Havia chovido muito naquele dia e o nível do rio aumentara quase um metro. A água parecia petróleo e mesmo pela gravação podia se perceber uma quantidade abundante de lixo na superfície. Caso Ofélia não morresse afogada, morreria intoxicada. Mas nem uma coisa, nem outra. Após segundos de suspense a suicida ressurgiu nadando rumo a uma das margens. Conhecidos haviam garantido que Ofélia não sabia nadar, que se quer havia entrado em uma piscina em toda a vida. Neste caso estávamos diante do quinto milagre. Porém, o round mais emocionante em sua luta pela sobrevivência ainda estava por vir.
Quando Ofélia alcançou a margem e tentou se levantar coberta de lodo caiu de costas rolando de volta para o rio. Provavelmente a corda ainda presa em seu pescoço enroscara em um tronco, um pneu ou nos dedos da Morte. E por mais três vezes tentou sair do rio, mas este a puxava de volta em um jogo macabro de cabo de guerra, de um lado o Rio turvo e gigantesco e do outro, Ofélia, a mulher mais fraca e desmotivada do planeta. Pois na quarta tentativa ela o venceu caindo de boca no barranco enlameado que margeava o rio. O sexto milagre.
Nós vimos à mulher escalar o barranco e se deitar de costas sobre uma moita de capim navalha, planta que cobre as margens do rio. O seu corpo não se movia o que nos fez pensar que havia nadado tão bravamente para morrer de exaustão. De súbito um espasmo, ela respirava, arfava, vivia! Os movimentos de seu peito se estabilizaram e nós a acompanhamos se arrastar para fora do campo de visão da câmera.
O ancora que comentava a gravação disse que aquela foi uma lição de perseverança para todos em casa que seguiram a odisséia de Ofélia. Mas o melhor estava por vir, enfatizou com um tom melodramático.
Passaram uma nova gravação parecida com a anterior, contudo, o relógio digital marcava vinte minutos depois. Vimos à mulher retornar ao ponto do qual caiu e amarrar a corda novamente no alteres e no pescoço. Nós bem apertados, mergulhou de cabeça abraçada ao peso. Passaram-se os minutos e nada veio à tona. O rio seguia seu curso indiferente, e nós o nosso confusos.
Os mergulhadores prosseguem com a busca. Mas Ofélia parece determinada a não ser encontrada.
Conto: A Dama do Refeitório
Foi uma daquelas experiências constrangedoras que nos pegam desprevenidos. Eu não esperava encontrar ninguém em especial ao ir almoçar no restaurante da faculdade. Meu plano era simples: engolir a refeição e correr para o alojamento e preparar o seminário de lingüística que estava atrasado. Mas o Destino decidiu improvisar comigo; ele tinha que coloca-la diante de mim para atrapalhar o meu dia. Aqueles foram 44 minutos que não desejaria nem para meu maior inimigo.
Ela se aproximou com um grupo de amigas segurando bandejas fumegantes.
– Meninas me desculpem, mas acabei de ver um amigo com quem não fa...
– Tá certo Júlia. A gente entendeu – cortou uma de suas colegas com cinismo.
– Tenha um bom almoço com seu amigo – disse outra pontuando a frase com uma piscadela.
A Júlia respondeu aos comentários com um palavrão dito baixinho e que provocou risinhos em suas colegas que se afastavam de minha mesa. Eu ainda não sei por que me dei ao trabalho de apurar os ouvidos e ouvir a conversa delas. Devo ter pressentido o constrangimento pairando no ar.
– E aí? Como vai? – disse a Júlia de pé ao meu lado.
– Bem – respondi secamente.
– Posso me sentar com você?
– Sim.
Ela se acomodou e iniciou um dialogo unilateral comigo; no qual eu não passava de um muro que rebatia seus comentários com “sim, sim, oh não, sim, sim” dissimulados. E a partir do instante em que a Júlia começou a falar não lembro de ter comido mais. Eu também esqueci do horário e de minhas obrigações. A minha realidade se resumia aquela moça tagarela a minha frente.
– Você mudou bastante desde a última vez que nos vimos – disse Júlia.
– É – respondi.
– Mas continua falante pelo visto – ela zombou.
– É – respondi sorrindo.
Ela sorriu por reflexo e pude ver quase todos os seus dentes que mereceriam ser descritos em versos se não estivessem tingidos pelo suco de groselha e enfeitados com fiapos verdes. Eu não sorri mais e ela me imitou para meu alívio, pois estava ficando zonzo com o movimento hipnótico de seus lábios.
– Algum problema? – ela me perguntou apreensiva.
– Nenhum – menti.
– Certeza? Não quer me dizer nada?
Eu queria sim, como queria. A pergunta coçava na minha garganta, mas não tinha coragem para proferi-la. Compreendam que eu era um rapaz extremamente tímido e especialmente na presença do sexo feminino. Mas era apenas a timidez que me emudecia, também havia a curiosidade de ver o que a Júlia faria a seguir.
– Vamos, diga o que está te incomodando. Você sabe que pode confiar em mim – disse pegando as minhas mãos e segurando-as com força.
O toque dela causou uma reação química sobrenatural me transformando em algo com a consistência de algodão doce.
– Uau! Você virou um pimentão – ela sentenciou com um tom malicioso.
– Não foi nada, acho que a comida está muito quente, só isso.
– Mas você está beliscando sua salada e omelete faz meia hora – retrucou ainda mais maliciosa divertindo-se em me embaraçar.
– Eu quis dizer que está apimentada demais. Como vai sua família?
– Quê? Minha família?
A Júlia ficou tão atrapalhada quanto eu ao ouvir a palavra família jogada de súbito sobre ela. No meu desespero por mudar de assunto devo ter tocado em um ponto delicado, dar chutes fora era minha especialidade.
– Você sabe que eu não gosto de falar da minha família – disse magoada.
– Desculpa, não tive a intenção de chateá-la.
– Não sei não, você está esquisito. Pensei que ficaria feliz de me rever depois de tanto tempo, mas desde que sentei aqui você tem agido com frieza.
Droga! Ela havia me posto contra a parede. Realmente havia algo errado comigo, sempre houve. Eu era o tipo de homem que se cala não hora em que deve falar, o tipo de cara que perde as boas oportunidades que a vida oferece. Se eu fosse um tiquinho corajoso teria desabafado tudo aquilo que me atormentava. Mas não, estava escrito que mais uma vez tentaria adiar meu inevitável triste fim.
– Que tal falar sobre o meu ex ou do meu cachorro que foi atropelado na sexta série? – prosseguia Julia quase chorando.
Enquanto isso eu me perdia em reflexões a respeito da dificuldade que temos em ser-mos francos quando necessário. Infelizmente, não pude impedir que a cena de um vira-lata de mochila sendo atropelado na saída da escola canina me provocasse um leve riso. Foi o suficiente para entornar o copo de cólera da moça. Ela se levantou e saiu do refeitório me acusando de ser insensível. Observei que ela não tinha recolhido a sua bandeja como mandava as regras da casa e conclui que era um pouco insensível sim. Mas minha insensibilidade não era o problema, o problema era eu não ter feito a maldita pergunta na hora certa. E se eu fosse totalmente insensível não teria corrido atrás dela para corrigir meu erro.
O refeitório estava cheio e as pessoas achando que se tratava de uma briga entre namorados torceram por mim – por pura zombaria – quando sai disparado atrás da Júlia. Eu pensei “Merda! Minha paranóia agora virou histeria coletiva”. E realmente, meus colegas ainda se lembram da cena. E fora do refeitório a história atingiu seu ápice.
Eu alcancei a Júlia já bem distante em uma alameda. Ela enxugava sua dor com um guardanapo de papel e resistiu em querer me ouvir. Eu tive que vencer toda minha timidez para prendê-la em meus braços e força-la a me ouvir. Nesse ponto acho que exagerei, mas como já dei a entender sou péssimo com as mulheres.
– Júlia me desculpa pela forma como te tratei no refeitório, mas é que...é que...
– É o quê?! Desembucha!
Então eu abri as comportas e deixei que minhas palavras inundassem seus ouvidos desmanchando seus castelos de areia.
– De onde mesmo que eu te conheço?
O véu foi rasgado e pude ver a verdade e a vergonha se misturando nos olhos da moça que segurava a um beijo de distância. Ela me empurrou e antes que eu recuperasse o equilíbrio recebi um tapa nas fuças que cai em cima de um canteiro de rosas pontiagudas. Nunca mais a vi
Bem feito para mim por não ter prestado atenção à canção e ter sido sincero como não se pode ser.
Ela se aproximou com um grupo de amigas segurando bandejas fumegantes.
– Meninas me desculpem, mas acabei de ver um amigo com quem não fa...
– Tá certo Júlia. A gente entendeu – cortou uma de suas colegas com cinismo.
– Tenha um bom almoço com seu amigo – disse outra pontuando a frase com uma piscadela.
A Júlia respondeu aos comentários com um palavrão dito baixinho e que provocou risinhos em suas colegas que se afastavam de minha mesa. Eu ainda não sei por que me dei ao trabalho de apurar os ouvidos e ouvir a conversa delas. Devo ter pressentido o constrangimento pairando no ar.
– E aí? Como vai? – disse a Júlia de pé ao meu lado.
– Bem – respondi secamente.
– Posso me sentar com você?
– Sim.
Ela se acomodou e iniciou um dialogo unilateral comigo; no qual eu não passava de um muro que rebatia seus comentários com “sim, sim, oh não, sim, sim” dissimulados. E a partir do instante em que a Júlia começou a falar não lembro de ter comido mais. Eu também esqueci do horário e de minhas obrigações. A minha realidade se resumia aquela moça tagarela a minha frente.
– Você mudou bastante desde a última vez que nos vimos – disse Júlia.
– É – respondi.
– Mas continua falante pelo visto – ela zombou.
– É – respondi sorrindo.
Ela sorriu por reflexo e pude ver quase todos os seus dentes que mereceriam ser descritos em versos se não estivessem tingidos pelo suco de groselha e enfeitados com fiapos verdes. Eu não sorri mais e ela me imitou para meu alívio, pois estava ficando zonzo com o movimento hipnótico de seus lábios.
– Algum problema? – ela me perguntou apreensiva.
– Nenhum – menti.
– Certeza? Não quer me dizer nada?
Eu queria sim, como queria. A pergunta coçava na minha garganta, mas não tinha coragem para proferi-la. Compreendam que eu era um rapaz extremamente tímido e especialmente na presença do sexo feminino. Mas era apenas a timidez que me emudecia, também havia a curiosidade de ver o que a Júlia faria a seguir.
– Vamos, diga o que está te incomodando. Você sabe que pode confiar em mim – disse pegando as minhas mãos e segurando-as com força.
O toque dela causou uma reação química sobrenatural me transformando em algo com a consistência de algodão doce.
– Uau! Você virou um pimentão – ela sentenciou com um tom malicioso.
– Não foi nada, acho que a comida está muito quente, só isso.
– Mas você está beliscando sua salada e omelete faz meia hora – retrucou ainda mais maliciosa divertindo-se em me embaraçar.
– Eu quis dizer que está apimentada demais. Como vai sua família?
– Quê? Minha família?
A Júlia ficou tão atrapalhada quanto eu ao ouvir a palavra família jogada de súbito sobre ela. No meu desespero por mudar de assunto devo ter tocado em um ponto delicado, dar chutes fora era minha especialidade.
– Você sabe que eu não gosto de falar da minha família – disse magoada.
– Desculpa, não tive a intenção de chateá-la.
– Não sei não, você está esquisito. Pensei que ficaria feliz de me rever depois de tanto tempo, mas desde que sentei aqui você tem agido com frieza.
Droga! Ela havia me posto contra a parede. Realmente havia algo errado comigo, sempre houve. Eu era o tipo de homem que se cala não hora em que deve falar, o tipo de cara que perde as boas oportunidades que a vida oferece. Se eu fosse um tiquinho corajoso teria desabafado tudo aquilo que me atormentava. Mas não, estava escrito que mais uma vez tentaria adiar meu inevitável triste fim.
– Que tal falar sobre o meu ex ou do meu cachorro que foi atropelado na sexta série? – prosseguia Julia quase chorando.
Enquanto isso eu me perdia em reflexões a respeito da dificuldade que temos em ser-mos francos quando necessário. Infelizmente, não pude impedir que a cena de um vira-lata de mochila sendo atropelado na saída da escola canina me provocasse um leve riso. Foi o suficiente para entornar o copo de cólera da moça. Ela se levantou e saiu do refeitório me acusando de ser insensível. Observei que ela não tinha recolhido a sua bandeja como mandava as regras da casa e conclui que era um pouco insensível sim. Mas minha insensibilidade não era o problema, o problema era eu não ter feito a maldita pergunta na hora certa. E se eu fosse totalmente insensível não teria corrido atrás dela para corrigir meu erro.
O refeitório estava cheio e as pessoas achando que se tratava de uma briga entre namorados torceram por mim – por pura zombaria – quando sai disparado atrás da Júlia. Eu pensei “Merda! Minha paranóia agora virou histeria coletiva”. E realmente, meus colegas ainda se lembram da cena. E fora do refeitório a história atingiu seu ápice.
Eu alcancei a Júlia já bem distante em uma alameda. Ela enxugava sua dor com um guardanapo de papel e resistiu em querer me ouvir. Eu tive que vencer toda minha timidez para prendê-la em meus braços e força-la a me ouvir. Nesse ponto acho que exagerei, mas como já dei a entender sou péssimo com as mulheres.
– Júlia me desculpa pela forma como te tratei no refeitório, mas é que...é que...
– É o quê?! Desembucha!
Então eu abri as comportas e deixei que minhas palavras inundassem seus ouvidos desmanchando seus castelos de areia.
– De onde mesmo que eu te conheço?
O véu foi rasgado e pude ver a verdade e a vergonha se misturando nos olhos da moça que segurava a um beijo de distância. Ela me empurrou e antes que eu recuperasse o equilíbrio recebi um tapa nas fuças que cai em cima de um canteiro de rosas pontiagudas. Nunca mais a vi
Bem feito para mim por não ter prestado atenção à canção e ter sido sincero como não se pode ser.
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
Conto: O Roubo
Galego era um santo e Dona Bela, a senhora sua esposa, duas vezes santa. O homem era pai de família, trabalhador e humilde, um exemplo para a comunidade. A mulher era benzedeira e com suas orações salvou muita criança doente. Resumindo, o casal era querido por todos no morro. Daí se compreende o alvoroço que se formou quando certa tarde de sábado Galego entrou arrasado no Bar do Tião exigindo uma dose de pinga.
– Ocê enchendo a cara, negô veio!?! – um conhecido disse mais exclamando que indagando.
– Não perturba Janjão. Me deixa! – respondeu Galego virando um copo. – Outro. – exigiu.
– Tem certeza? Ocê não é de beber Seu Galego. – disse o atendente do bar.
– A única coisa que tenho certeza nessa merda de vida é que quero mais uma dose droga! – gritou Galego batendo o copo vazio no balcão com força.
– Calma companheiro, conta pra gente o que se passa? – perguntou outro conhecido.
- Parece até que viu o demônio ou que acabou de ser assaltado. - comentou um velho amigo.
– Pior! Roubaram a Bela, porra!
No canto pararam de jogar sinuca e moço do churrasquinho esqueceu da carne. E alguém desligou a TV no meio do jogo tamanho a gravidade da notícia.
– Não pode ser, Galego. Quando e onde foi isso? – alguém perguntou revoltado.
– Aqui mesmo no morro enquanto eu trabalhava. Acabei de saber. – informou Galego caindo no choro.
Alguém perguntou se a mulher tinha sido apenas roubada ou algo mais e levou peteleco pela indiscrição. Mas entre soluços e agora abraçado a um vizinho Galego balbuciou que haviam feito de tudo com esposa. A indignação no bar atingiu o nível máximo. Perguntaram também se ela estava sozinha e onde exatamente aconteceu a tragédia. Quando Galego chorou que foi na própria casa e na presença dos filhos e que foram estes que o informaram da desgraça teve quem o acompanhou no choro.
– E ocê sabe quem foi o filho da puta que fez isso com tua esposa? – perguntou o dono do bar tirando uma arma debaixo do balcão.
– O Genário. – respondeu Galego mastigando o nome.
– O Genário da banca de jornal? – perguntaram incrédulos.
O povo esperava que fosse um nóia ou mesmo um traficante. Um tranqueira qualquer, mas o Genário era quase tão gente boa quanto o Galego e a Dona Bela, além de serem amigos, o que acabou revoltando o grupo em dobro. E como o Galego confirmou que o criminoso era o Genário e como ele nunca mentia a marmanjada catou os tacos de sinuca e desceu o morro.
Pelo caminho o grupo de lixamento ia engrossando e quando chegaram na banca já era uma passeata. Não encontraram o infeliz e moeram a banca e queimaram o que sobrou. Estavam ensaiando o que fariam com o crápula que havia feito mal a Dona Bela, que na empolgação de lixar ninguém se lembrou de perguntar se passava bem, mas bem é que não podia estar.
Quando chegaram na casa do Genário gritaram que o judas saísse que era sábado aleluia no morro. Mas quem saiu foi a Dona Bela, você ouviu direito, Dona Bela, sim senhor, ela apareceu um tanto constrangida e um tanto brava.
– Que zona é essa?! – perguntou a mulher para o povaréu atônito. – Já sei, foi o frouxo do meu ex que foi pedir ajuda pra me arrastar de volta pra casa, não é?
– Desculpa, mas a senhora não foi roubada hoje pelo Genário? – alguém perguntou.
– Quem foi roubado foi o bunda mole do Galego. Ocês são tontos ou o quê?!
O povo injuriado espremeu o Galego até não sobrar sumo.
– Ocê enchendo a cara, negô veio!?! – um conhecido disse mais exclamando que indagando.
– Não perturba Janjão. Me deixa! – respondeu Galego virando um copo. – Outro. – exigiu.
– Tem certeza? Ocê não é de beber Seu Galego. – disse o atendente do bar.
– A única coisa que tenho certeza nessa merda de vida é que quero mais uma dose droga! – gritou Galego batendo o copo vazio no balcão com força.
– Calma companheiro, conta pra gente o que se passa? – perguntou outro conhecido.
- Parece até que viu o demônio ou que acabou de ser assaltado. - comentou um velho amigo.
– Pior! Roubaram a Bela, porra!
No canto pararam de jogar sinuca e moço do churrasquinho esqueceu da carne. E alguém desligou a TV no meio do jogo tamanho a gravidade da notícia.
– Não pode ser, Galego. Quando e onde foi isso? – alguém perguntou revoltado.
– Aqui mesmo no morro enquanto eu trabalhava. Acabei de saber. – informou Galego caindo no choro.
Alguém perguntou se a mulher tinha sido apenas roubada ou algo mais e levou peteleco pela indiscrição. Mas entre soluços e agora abraçado a um vizinho Galego balbuciou que haviam feito de tudo com esposa. A indignação no bar atingiu o nível máximo. Perguntaram também se ela estava sozinha e onde exatamente aconteceu a tragédia. Quando Galego chorou que foi na própria casa e na presença dos filhos e que foram estes que o informaram da desgraça teve quem o acompanhou no choro.
– E ocê sabe quem foi o filho da puta que fez isso com tua esposa? – perguntou o dono do bar tirando uma arma debaixo do balcão.
– O Genário. – respondeu Galego mastigando o nome.
– O Genário da banca de jornal? – perguntaram incrédulos.
O povo esperava que fosse um nóia ou mesmo um traficante. Um tranqueira qualquer, mas o Genário era quase tão gente boa quanto o Galego e a Dona Bela, além de serem amigos, o que acabou revoltando o grupo em dobro. E como o Galego confirmou que o criminoso era o Genário e como ele nunca mentia a marmanjada catou os tacos de sinuca e desceu o morro.
Pelo caminho o grupo de lixamento ia engrossando e quando chegaram na banca já era uma passeata. Não encontraram o infeliz e moeram a banca e queimaram o que sobrou. Estavam ensaiando o que fariam com o crápula que havia feito mal a Dona Bela, que na empolgação de lixar ninguém se lembrou de perguntar se passava bem, mas bem é que não podia estar.
Quando chegaram na casa do Genário gritaram que o judas saísse que era sábado aleluia no morro. Mas quem saiu foi a Dona Bela, você ouviu direito, Dona Bela, sim senhor, ela apareceu um tanto constrangida e um tanto brava.
– Que zona é essa?! – perguntou a mulher para o povaréu atônito. – Já sei, foi o frouxo do meu ex que foi pedir ajuda pra me arrastar de volta pra casa, não é?
– Desculpa, mas a senhora não foi roubada hoje pelo Genário? – alguém perguntou.
– Quem foi roubado foi o bunda mole do Galego. Ocês são tontos ou o quê?!
O povo injuriado espremeu o Galego até não sobrar sumo.
Conto: O Tempero Secreto
Carlos estava arrependido e disposto a corrigir sua falta. Mas no fundo sabia que não havia desculpa pela traição. Não importava o que fizesse sua esposa não se esqueceria da forma como ele a recompensou pelos seus noves anos de dedicação matrimonial. Chifre dado era chifre fincado, pode-se cerrar, mas a raiz é profunda, atravessa o cérebro, entala na garganta e atinge o coração. Carlos tinha certeza disso, pois fosse o contrário, tivesse ele pego a doce Laurinha derretendo-se na língua de outro no leito conjugal e teria tingido o lençol de sangue. Ah se teria! Assim pensava Carlos no elevador munido de um ramalhete, mas desprovido de esperanças.
A porta do elevador se abriu e outra ameaçadora despontou no final de um corredor. O número 504 indicava que era o seu velho apartamento, no qual ele compartilhou os melhores anos da sua vida com a melhor das mulheres, esposa fiel e mãe de seus filhos. Ele cambaleou pelo corredor de cabeça baixa sob o peso da culpa tropeçando na vergonha que enroscava em suas pernas. Graças a deus as crianças estavam visitando os avós quando Laurinha o expulsou de casa e escarrou o divórcio em sua cara. Contudo, isto foi ontem, e por telefone a esposa havia dito que os filhos ainda não estavam sabendo da briga. Sim, ela havia ligado. Pelo visto, não era da natureza daquela mulher guardar rancor, pois na manhã seguinte ligou convidando seu marido para conversar, mas à noite, na hora da ceia.
Laurinha atendeu de pronto a primeira batida de Carlos na porta. O sujeito esperava um banho de água fervente nas fuças ou um tiro com o 38 que guardava em casa, apesar de sempre temer que arma um dia fosse usada contra um membro da família. Mas nem vapor, nem fumaça. O que recebeu foi um “oi” caloroso a queima-roupa que quase o derruba de tão inesperado. Ele se recompõe rápido e disfarça o embaraço oferecendo as flores para Laurinha que agradece sorrindo.
Carlos foi levado para a sala de jantar onde uma refeição quente e acolhedora o aguardava. As lâmpadas estavam apagadas e a pouca claridade fluía de duas velas postas na mesa. O homem lutou contra os aromas e tons que entorpeciam seus sentidos e quis discutir a relação com a esposa antes da ceia, mas a mulher insistiu que comessem primeiro. Ela disse que de estômago cheio o coração pensava melhor e foi a cozinha pegar uma garrafa de vinho para refinar ainda mais os pensamentos da nobre víscera.
Entre a ida e a vinda de Laurinha, Carlos teve tempo de refletir sobre como sua mulher o surpreendera. Talvez, tivesse subestimado o amor dela e sua capacidade de perdoar. E tal idéia fez brotar uma fonte inesgotável de esperança em seu peito. Estaria seu casamento salvo e sua família preservada? A carne banhada em molho madeira a sua frente dizia que sim.
Mas antes que Laurinha retorna-se com a garrafa uma coisa úmida e áspera correu por uma de suas mãos. Era seu cãozinho Serelepe que cabia inteiro na boca de um pastor alemão. O bichinho ganhou um pedaço de carne e começou a mastigá-lo encolhido entre os pés do dono. Ele não devia dar carne para o cãozinho por muitos motivos, mas principalmente porque irritava sua esposa, portanto torceu para que o bicho comesse quieto e não o denunciasse.
Quando Laurinha retornou trazia uma garrafa aberta e uma taça já cheia que ofereceu ao marido. Ela sentou também e cortou o discurso de Carlos que lhe pedia perdão e se vangloriava que ele, um pecador, tinha uma santa em casa. Laurinha acalmou de vez o coração de Carlos ao garantir que estava tudo bem, e deu a entender que o amor dela não havia morrido com o golpe traiçoeiro do marido. Carlos se calou certo de que sem dúvida alguma não merecia aquela mulher. Merecia era morrer por ter machucado um ser tão dócil, merecia morrer da pior forma possível, assim acreditava, mas ironicamente sua traição era paga com um banquete. Pois não comeria, ao menos isso. Não merecia provar nunca mais dos manjares de Laurinha.
A mulher se inquietou com a recusa do marido em provar do prato que esfriava e da taça que esquentava. Alegava que havia posto todo seu amor naquela ceia e ele a ofendia se recusando a comê-la. Porém, Carlos estava convencido que não era digno de tanto amor e consideração. Isto até que o pobre Serelepe saiu debaixo da mesa tossindo e se retorcendo. O cãozinho caiu de lado inchado a ponto de estourar e enquanto tremia como se estivesse ligado a uma tomada punha todo o sangue do corpo pra fora por quantos orifícios tivesse.
O casal assistiu a cena que não durou mais que um minuto sem pronunciar uma palavra. Os sorrisos que traziam nos lábios caíram no chão e eles puderam ouvi-los se espedaçar. Estilhaços devem ter acertado os olhos de Laurinha, pois uma hemorragia de lágrimas borrou sua maquiagem. Carlos mordeu os lábios, respirou fundo e silenciosamente levou uma garfada à boca, mastigou tranquilamente e engoliu. Depois tomou um gole do vinho e se serviu de mais uma fatia de carne. E depois outra e outra sem nunca tirar os olhos da esposa que continuava a chorar.
Carlos tinha concluído que merecia sim aquela ceia que cheirava a ressentimento.
A porta do elevador se abriu e outra ameaçadora despontou no final de um corredor. O número 504 indicava que era o seu velho apartamento, no qual ele compartilhou os melhores anos da sua vida com a melhor das mulheres, esposa fiel e mãe de seus filhos. Ele cambaleou pelo corredor de cabeça baixa sob o peso da culpa tropeçando na vergonha que enroscava em suas pernas. Graças a deus as crianças estavam visitando os avós quando Laurinha o expulsou de casa e escarrou o divórcio em sua cara. Contudo, isto foi ontem, e por telefone a esposa havia dito que os filhos ainda não estavam sabendo da briga. Sim, ela havia ligado. Pelo visto, não era da natureza daquela mulher guardar rancor, pois na manhã seguinte ligou convidando seu marido para conversar, mas à noite, na hora da ceia.
Laurinha atendeu de pronto a primeira batida de Carlos na porta. O sujeito esperava um banho de água fervente nas fuças ou um tiro com o 38 que guardava em casa, apesar de sempre temer que arma um dia fosse usada contra um membro da família. Mas nem vapor, nem fumaça. O que recebeu foi um “oi” caloroso a queima-roupa que quase o derruba de tão inesperado. Ele se recompõe rápido e disfarça o embaraço oferecendo as flores para Laurinha que agradece sorrindo.
Carlos foi levado para a sala de jantar onde uma refeição quente e acolhedora o aguardava. As lâmpadas estavam apagadas e a pouca claridade fluía de duas velas postas na mesa. O homem lutou contra os aromas e tons que entorpeciam seus sentidos e quis discutir a relação com a esposa antes da ceia, mas a mulher insistiu que comessem primeiro. Ela disse que de estômago cheio o coração pensava melhor e foi a cozinha pegar uma garrafa de vinho para refinar ainda mais os pensamentos da nobre víscera.
Entre a ida e a vinda de Laurinha, Carlos teve tempo de refletir sobre como sua mulher o surpreendera. Talvez, tivesse subestimado o amor dela e sua capacidade de perdoar. E tal idéia fez brotar uma fonte inesgotável de esperança em seu peito. Estaria seu casamento salvo e sua família preservada? A carne banhada em molho madeira a sua frente dizia que sim.
Mas antes que Laurinha retorna-se com a garrafa uma coisa úmida e áspera correu por uma de suas mãos. Era seu cãozinho Serelepe que cabia inteiro na boca de um pastor alemão. O bichinho ganhou um pedaço de carne e começou a mastigá-lo encolhido entre os pés do dono. Ele não devia dar carne para o cãozinho por muitos motivos, mas principalmente porque irritava sua esposa, portanto torceu para que o bicho comesse quieto e não o denunciasse.
Quando Laurinha retornou trazia uma garrafa aberta e uma taça já cheia que ofereceu ao marido. Ela sentou também e cortou o discurso de Carlos que lhe pedia perdão e se vangloriava que ele, um pecador, tinha uma santa em casa. Laurinha acalmou de vez o coração de Carlos ao garantir que estava tudo bem, e deu a entender que o amor dela não havia morrido com o golpe traiçoeiro do marido. Carlos se calou certo de que sem dúvida alguma não merecia aquela mulher. Merecia era morrer por ter machucado um ser tão dócil, merecia morrer da pior forma possível, assim acreditava, mas ironicamente sua traição era paga com um banquete. Pois não comeria, ao menos isso. Não merecia provar nunca mais dos manjares de Laurinha.
A mulher se inquietou com a recusa do marido em provar do prato que esfriava e da taça que esquentava. Alegava que havia posto todo seu amor naquela ceia e ele a ofendia se recusando a comê-la. Porém, Carlos estava convencido que não era digno de tanto amor e consideração. Isto até que o pobre Serelepe saiu debaixo da mesa tossindo e se retorcendo. O cãozinho caiu de lado inchado a ponto de estourar e enquanto tremia como se estivesse ligado a uma tomada punha todo o sangue do corpo pra fora por quantos orifícios tivesse.
O casal assistiu a cena que não durou mais que um minuto sem pronunciar uma palavra. Os sorrisos que traziam nos lábios caíram no chão e eles puderam ouvi-los se espedaçar. Estilhaços devem ter acertado os olhos de Laurinha, pois uma hemorragia de lágrimas borrou sua maquiagem. Carlos mordeu os lábios, respirou fundo e silenciosamente levou uma garfada à boca, mastigou tranquilamente e engoliu. Depois tomou um gole do vinho e se serviu de mais uma fatia de carne. E depois outra e outra sem nunca tirar os olhos da esposa que continuava a chorar.
Carlos tinha concluído que merecia sim aquela ceia que cheirava a ressentimento.
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
Conto: Pais Românticos
Romeuzito havia perdido o apetite no dia em que os novos vizinhos mudaram para a casa ao lado. E os pais desconfiaram que a responsável pelo adoecimento do guri fosse uma rosa do jardim ao lado; pois o casal reparou que a família recém chegada tinha uma princesinha de doze anos. A qualquer hora do dia que a encontravam, fosse brincando na calçada, no shopping ou na saída da escola, a menina estava impecável de vestido florido e sapatinhos lustrosos. As flores da fazenda mudavam diariamente, assim como a cor dos sapatos. Apenas o perfume doce e suave permanecia inalterado.
Os pais do Romeuzito se apaixonaram pela menina a primeira vista e, portanto, compreendiam que com o filho o encanto da jovem vizinha seria ainda mais intenso. E também sabiam por experiência própria que o amor não poupa nem mesmo crianças de doze anos. E mais, não havia essa de amor inocente. O amor é cruel e traiçoeiro e quanto mais vulnerável o coração, mais impiedoso é o sentimento. E tudo indicava que o filhinho deles era a mais recente vitima do Cúpido no bairro.
Com o passar dos dias o apetite do menino piorou e ele não falava mais. Na hora das refeições era com muita relutância que engolia duas ou três colheres de qualquer coisa e nenhum pio. Não assistia mais desenhos, perdera o interesse pelos gibis e games. Não pedia mais por passeios no shopping, praia ou cinema. Sua vida era ir à escola de manhã com evidente má vontade, retornar a tarde e se confinar em seu quarto.
A janela do quarto dava para o quintal da casa vizinha o que colaborava para a tese dos pais de que o filho passava a tarde observando a amada. O pai até tentou ter uma conversa de “homens” com o filho, mas só conseguiu gaguejar na hora. A mãe, muito mais pratica recorreu a uma estratégia drástica: convidou os vizinhos para um churrasco. Ela lançaria o filho na cova da leoa e torceria para que seu homenzinho resolvesse seus problemas amorosos por conta própria.
O Romeuzito foi quase tão enfeitado para o churrasco quanto à menina. Um perfeito casal em miniatura de bolo de casamento. Infelizmente, o garoto não se mexia nem falava, ignorando completamente a presença de sua julieta. Os pais desesperados tentaram incentivar a menina a puxar conversa com o filho deles. “Peça a ele para te mostrar seus troféus de judô”. Mas a menina achou melhor não perturbá-lo e alertou aos adultos que o garoto estava encharcado de suor e branco com um fantasma.
Uma hora depois os pais recebiam um pito no corredor de um hospital. Uma médica queria saber como os dois não foram capazes de perceber que o filho estava doente. Segunda a doutora a criança sofria de uma infecção generalizada, mas tratável.
No final o Roemuzito escapou sem seqüelas e vive bem e ainda solteiro aos doze. Quem não escapou ileso foi o orgulho de seus pais. E para diminuir o mico diziam um para outro que o filho levava a sério demais esse lance de morrer de amor.
Os pais do Romeuzito se apaixonaram pela menina a primeira vista e, portanto, compreendiam que com o filho o encanto da jovem vizinha seria ainda mais intenso. E também sabiam por experiência própria que o amor não poupa nem mesmo crianças de doze anos. E mais, não havia essa de amor inocente. O amor é cruel e traiçoeiro e quanto mais vulnerável o coração, mais impiedoso é o sentimento. E tudo indicava que o filhinho deles era a mais recente vitima do Cúpido no bairro.
Com o passar dos dias o apetite do menino piorou e ele não falava mais. Na hora das refeições era com muita relutância que engolia duas ou três colheres de qualquer coisa e nenhum pio. Não assistia mais desenhos, perdera o interesse pelos gibis e games. Não pedia mais por passeios no shopping, praia ou cinema. Sua vida era ir à escola de manhã com evidente má vontade, retornar a tarde e se confinar em seu quarto.
A janela do quarto dava para o quintal da casa vizinha o que colaborava para a tese dos pais de que o filho passava a tarde observando a amada. O pai até tentou ter uma conversa de “homens” com o filho, mas só conseguiu gaguejar na hora. A mãe, muito mais pratica recorreu a uma estratégia drástica: convidou os vizinhos para um churrasco. Ela lançaria o filho na cova da leoa e torceria para que seu homenzinho resolvesse seus problemas amorosos por conta própria.
O Romeuzito foi quase tão enfeitado para o churrasco quanto à menina. Um perfeito casal em miniatura de bolo de casamento. Infelizmente, o garoto não se mexia nem falava, ignorando completamente a presença de sua julieta. Os pais desesperados tentaram incentivar a menina a puxar conversa com o filho deles. “Peça a ele para te mostrar seus troféus de judô”. Mas a menina achou melhor não perturbá-lo e alertou aos adultos que o garoto estava encharcado de suor e branco com um fantasma.
Uma hora depois os pais recebiam um pito no corredor de um hospital. Uma médica queria saber como os dois não foram capazes de perceber que o filho estava doente. Segunda a doutora a criança sofria de uma infecção generalizada, mas tratável.
No final o Roemuzito escapou sem seqüelas e vive bem e ainda solteiro aos doze. Quem não escapou ileso foi o orgulho de seus pais. E para diminuir o mico diziam um para outro que o filho levava a sério demais esse lance de morrer de amor.
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Conto: O Aparelho de Tortura
Ainda não compreendo como sobrevivi àquela tarde. No início, logo após acordar, pensei que tudo não passara de um pesadelo. Mas a dor que despertava e se espalhava pelo meu rosto era bem real. Não pude conter as lágrimas que saiam à medida que as lembranças chegavam. Devagar o quadro funesto tomava forma em minha mente. Lutei para manter as horas malditas aprisionadas em meu inconsciente, mas elas romperam o bloqueio mental e desceram quentes pela minha face.
Lembro que me trouxeram a força em um carro. Eu perguntei ao homem que dirigia, meu próprio pai, para onde estava me levando. “Você sabe” dizia sem desviar o olhar do trânsito. Sim, eu sabia. Eu sabia para onde ia e o que esperava por mim. Não seria minha primeira vez, talvez com sorte eu não sobrevivesse e fosse a última. E nunca mais eu seria submetido à dor e a humilhação.
Já fazia cinco anos que ao menos uma vez por mês era pego, colocado no mesmo carro e levado ao mesmo endereço. Meu drama não era nenhum segredo e expunha minhas cicatrizes em público sem pudor algum.Todos na cidade sabiam o que estava acontecendo e meus colegas zombavam de mim. Mas ninguém fazia nada a respeito. Não era problema deles. Não se importavam comigo, não havia motivo para tanto, pois o sangue derramado não era deles e nem dos seus, mas de um completo estranho. Não os reprovo, eu também preferiria que outro houvesse me substituído em meu calvário.
Eu já havia desistido de resistir, não gritava e não me debatia mais, apenas seguia meu pai pelo corredor até o cubículo de sempre. Atravessar aquele corredor era como adentrar em meu próprio corpo e encarar os vermes que esperam ansiosos para devorar-me a carne. Quem me dera tivesse o consolo de uma venda que desnorteasse meu temor, que me desse tolas esperanças de que desta vez seria diferente, que atrás da maldita porta me aguardasse um bolo de aniversário, um filhote peludo ou ao menos um buraco negro para me tragar. Mas não, do outro lado, o pesadelo outra vez.
O cubículo era uma ratoeira sem cor com uma cadeira dura e fria posta no centro. Era o meu trono, meu lugar de honra na mesa. Meu anfitrião na câmara dos horrores era um homem branco como um espírito desencarnado usando uma mascara que deixava apenas seu olhar homicida de fora. Ficávamos a sós para os seu deleite. E enquanto ele se divertia as minhas custas, eu fugia flutuando para longe soprado pelo vento como uma folha morta. Pobres músculos e ossos que não tinham escolha e eram forçados a participar passivamente dos jogos sádicos de meu algoz.
Às vezes a sessão durava meia hora, quarenta minutos; às vezes mais. As agulhas trabalhavam em meus nervos e as pinças beliscavam a massa vermelha e pulsante do meu ser. O cheiro do ácido corroia minhas narinas e a luz forte queimava minhas retinas. A posição que eu era obrigado a ficar somada ao ranço das substâncias estranhas que escorriam por minha garganta abaixo me causavam náuseas. O pior era não poder gritar, não poder manifestar o horror de ver partículas de cálcio voando pela sala, meus ossos pulverizados subindo como vapor da minha boca muda, vazia de linguagem e transbordante de asco.
Era tão vasta a variedade de ferramentas que desfilavam pelo meu rosto. Seus nomes eram misteriosos e exóticos como o nome de demônios. Brinquedos frios e afiados que me desfiguravam, exploravam, desmontavam e remodelavam. O carrasco acocha os arames e meus dentes trincam, mais um pouco e extrairia minha alma pela raiz. Na hora sentia apenas medo, o resto era paralisia. A dor física vinha depois quando retornava de meus devaneios ou despertava de um abençoado desmaio como desta vez. Mais tarde vem a humilhação.
Eu apalpo meu rosto e meus dedos não encontram a máscara de ferro. Seria possível que tivessem removido meu maior suplício? Corra ao banheiro e contemplo minha imagem no espelho livre da parafernália de arames e ganchos. Oh, meu Deus! Teria terminado a era do cabresto de elástico, lábios lacerados e dentes doloridos? Minha gengiva nunca mais sangraria e as pessoas não zombariam mais de mim?
O garoto no espelho chora de alívio. E antes que eu vá confirmar com meus pais se os passeios ao dentista estão encerrados dou uma bela examinada no sorriso. Dentes perfeitos, vida refeita. Saio satisfeito e convencido de que o sacrifico valeu a pena.
Lembro que me trouxeram a força em um carro. Eu perguntei ao homem que dirigia, meu próprio pai, para onde estava me levando. “Você sabe” dizia sem desviar o olhar do trânsito. Sim, eu sabia. Eu sabia para onde ia e o que esperava por mim. Não seria minha primeira vez, talvez com sorte eu não sobrevivesse e fosse a última. E nunca mais eu seria submetido à dor e a humilhação.
Já fazia cinco anos que ao menos uma vez por mês era pego, colocado no mesmo carro e levado ao mesmo endereço. Meu drama não era nenhum segredo e expunha minhas cicatrizes em público sem pudor algum.Todos na cidade sabiam o que estava acontecendo e meus colegas zombavam de mim. Mas ninguém fazia nada a respeito. Não era problema deles. Não se importavam comigo, não havia motivo para tanto, pois o sangue derramado não era deles e nem dos seus, mas de um completo estranho. Não os reprovo, eu também preferiria que outro houvesse me substituído em meu calvário.
Eu já havia desistido de resistir, não gritava e não me debatia mais, apenas seguia meu pai pelo corredor até o cubículo de sempre. Atravessar aquele corredor era como adentrar em meu próprio corpo e encarar os vermes que esperam ansiosos para devorar-me a carne. Quem me dera tivesse o consolo de uma venda que desnorteasse meu temor, que me desse tolas esperanças de que desta vez seria diferente, que atrás da maldita porta me aguardasse um bolo de aniversário, um filhote peludo ou ao menos um buraco negro para me tragar. Mas não, do outro lado, o pesadelo outra vez.
O cubículo era uma ratoeira sem cor com uma cadeira dura e fria posta no centro. Era o meu trono, meu lugar de honra na mesa. Meu anfitrião na câmara dos horrores era um homem branco como um espírito desencarnado usando uma mascara que deixava apenas seu olhar homicida de fora. Ficávamos a sós para os seu deleite. E enquanto ele se divertia as minhas custas, eu fugia flutuando para longe soprado pelo vento como uma folha morta. Pobres músculos e ossos que não tinham escolha e eram forçados a participar passivamente dos jogos sádicos de meu algoz.
Às vezes a sessão durava meia hora, quarenta minutos; às vezes mais. As agulhas trabalhavam em meus nervos e as pinças beliscavam a massa vermelha e pulsante do meu ser. O cheiro do ácido corroia minhas narinas e a luz forte queimava minhas retinas. A posição que eu era obrigado a ficar somada ao ranço das substâncias estranhas que escorriam por minha garganta abaixo me causavam náuseas. O pior era não poder gritar, não poder manifestar o horror de ver partículas de cálcio voando pela sala, meus ossos pulverizados subindo como vapor da minha boca muda, vazia de linguagem e transbordante de asco.
Era tão vasta a variedade de ferramentas que desfilavam pelo meu rosto. Seus nomes eram misteriosos e exóticos como o nome de demônios. Brinquedos frios e afiados que me desfiguravam, exploravam, desmontavam e remodelavam. O carrasco acocha os arames e meus dentes trincam, mais um pouco e extrairia minha alma pela raiz. Na hora sentia apenas medo, o resto era paralisia. A dor física vinha depois quando retornava de meus devaneios ou despertava de um abençoado desmaio como desta vez. Mais tarde vem a humilhação.
Eu apalpo meu rosto e meus dedos não encontram a máscara de ferro. Seria possível que tivessem removido meu maior suplício? Corra ao banheiro e contemplo minha imagem no espelho livre da parafernália de arames e ganchos. Oh, meu Deus! Teria terminado a era do cabresto de elástico, lábios lacerados e dentes doloridos? Minha gengiva nunca mais sangraria e as pessoas não zombariam mais de mim?
O garoto no espelho chora de alívio. E antes que eu vá confirmar com meus pais se os passeios ao dentista estão encerrados dou uma bela examinada no sorriso. Dentes perfeitos, vida refeita. Saio satisfeito e convencido de que o sacrifico valeu a pena.
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