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sábado, 5 de setembro de 2009

Conto: O dia em que Papai morreu

"Nada penetra mais fundo e envenena que uma palavra mal dita”.
Hermes Locke

Descuido matou Papai. Culpa dele não podar a língua. Era peixe a ser fisgado, sabido de todos quanto. Da feita, de oito completo, rondava os nove, meninote de tudo; porquerinha minha, no linguajar de mãe. Era de manhã, Sol sorrindo feito jumento. Eu e minha laia cumpria pena escolar. Não guardei o ano, lembro da lição, porém. Era artes, matéria exata pra gente arteira, de nossa espécie não existe mais; o mestre deu cabo a golpes de régua, feliz que só. E enquanto eu pelejava na carteira nos emendos e remendos de cola e papel, na roça papai labutava terra e pó banhando-se em suor. A cena era de ser bem essa.
Não tenho muito que dizer. Era dia seleto na escola, ironia, sexta de antevéspera dos pais. O mestre falou do valor do genitor para o bom filho, todos eram e juravam ser; disputava-se quem amava e respeitava mais seu velho, orgulhos infantis. No sítio, certeza que Papai pensava não em mim, era no meu pão, na minha roupa, no meu caderno que a mente e corpo de Papai se ocupava. Sua cabeça era da família, o mestre explicou. Papai penhorava seu coração pelos filhos e esposa, a gente agradecia. Papai era Homem, era Super. Que gostosura era ser filho de meu Papai!
Papai era rude, eu era rústico, combinávamos. Da ninhada só eu escapei das pancadas, predileto talvez. Mamãe amava todos com uma só medida. Papai tinha seu eleito, quanta briga. Meus irmãos desaluviavam em mim ciúme e frustração, depois Papai me vingava e a desgraceira espichava. Era tanto amor e ódio que descabia em casa nossa, choupana rasa a tombar de lado. Terminaram por demandar a mando do velho. Mamãe se debulha ainda hoje pelo nunca mais dos rebentos que pipocaram sertão a fora. Sina de mãe.
Tinha respeito por meu pai inté demais. Um mar sem fim de admiração. Beleza de se vê só. Inda hoje tenho viva as nesgas daquele amor, fagulhas guardadas debaixo das feridas.
Lembro da aula acabada, da jardineira me levando pro sítio, eu mais a molecada da rural numa algazarra. A gente ia feliz, satisfeitos de nossas feituras. Eu mesmo namorava o cartão que mais tarde passaria a meu velho. Pudesse dava algo de brilho, a ocasião pedia, mas presente melhor eu ficaria devendo. Vontade de agradar não faltava.
Na altura da porteira desci da condução e desembestei pelo corredor do cafezal. Naquele tempo se plantava café e muito. Longe vi pai e mãe, ele na derriça, ela na peneira. Tinha camaradas dando força também, mas deles nem, ficou meu pai e minha mãe na memória. Ainda cheiram o doce dos grãos maduros.
Eu encostei no velho, pedi atenção e ele o quê? Pro senhor pai, oferecendo meu coração dobrado com um “Feliz dia dos pais” gravado com canetinha. Ele pegou, examinou atento, procurava não sei o quê, de certo não encontrou. Sei que gesto e palavras seguintes não foram pensados, sei que o homem devia de estar mordido. E sei que nada disso era desculpa. “Toma, quando for grande e trabalhar volta com um maço de cédula, único papel que me interessa” me disse devolvendo o cartão e retornando a labuta. Fiquei plantado junto aos demais pés de café, um nada.
Mamãe tentou concertar, pediu o cartão pra si, elogiou, fez cafuné. A intenção foi boa e inútil, não podia salvar papai. O meu velho morreu ali. Ele se matou, deixando no lugar um senhor com quem venho me enfrentando desde então. O sujeito nunca atreveu por a mão em mim, ele sabe que sou coisa ruim e tenho a quem puxar. Ele conheceu meu finado pai, que deus o tenha.

2 comentários:

  1. Caro Mateus,venho por meio desta lhe dizer que o narrador retrata acontecimentos que tenho vivo na mente e nas veias, portanto sou suspeito em comentar tal narrativa, contudo gostei da maneira em que utiliza a língua aproximando da variante que realmente se cultua na s regioes do interior, no meu ver uma riqueza cultural, que nos faz Sertão,entender dos espinhos,misterios que nos reservam as veredas.

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  2. Este é um conto que faz o leitor chorar pela clareza com que é mostrado o sentimento do filho em relação ao pai...Surpreendente!

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