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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Conto: O Tempero Secreto

Carlos estava arrependido e disposto a corrigir sua falta. Mas no fundo sabia que não havia desculpa pela traição. Não importava o que fizesse sua esposa não se esqueceria da forma como ele a recompensou pelos seus noves anos de dedicação matrimonial. Chifre dado era chifre fincado, pode-se cerrar, mas a raiz é profunda, atravessa o cérebro, entala na garganta e atinge o coração. Carlos tinha certeza disso, pois fosse o contrário, tivesse ele pego a doce Laurinha derretendo-se na língua de outro no leito conjugal e teria tingido o lençol de sangue. Ah se teria! Assim pensava Carlos no elevador munido de um ramalhete, mas desprovido de esperanças.
A porta do elevador se abriu e outra ameaçadora despontou no final de um corredor. O número 504 indicava que era o seu velho apartamento, no qual ele compartilhou os melhores anos da sua vida com a melhor das mulheres, esposa fiel e mãe de seus filhos. Ele cambaleou pelo corredor de cabeça baixa sob o peso da culpa tropeçando na vergonha que enroscava em suas pernas. Graças a deus as crianças estavam visitando os avós quando Laurinha o expulsou de casa e escarrou o divórcio em sua cara. Contudo, isto foi ontem, e por telefone a esposa havia dito que os filhos ainda não estavam sabendo da briga. Sim, ela havia ligado. Pelo visto, não era da natureza daquela mulher guardar rancor, pois na manhã seguinte ligou convidando seu marido para conversar, mas à noite, na hora da ceia.
Laurinha atendeu de pronto a primeira batida de Carlos na porta. O sujeito esperava um banho de água fervente nas fuças ou um tiro com o 38 que guardava em casa, apesar de sempre temer que arma um dia fosse usada contra um membro da família. Mas nem vapor, nem fumaça. O que recebeu foi um “oi” caloroso a queima-roupa que quase o derruba de tão inesperado. Ele se recompõe rápido e disfarça o embaraço oferecendo as flores para Laurinha que agradece sorrindo.
Carlos foi levado para a sala de jantar onde uma refeição quente e acolhedora o aguardava. As lâmpadas estavam apagadas e a pouca claridade fluía de duas velas postas na mesa. O homem lutou contra os aromas e tons que entorpeciam seus sentidos e quis discutir a relação com a esposa antes da ceia, mas a mulher insistiu que comessem primeiro. Ela disse que de estômago cheio o coração pensava melhor e foi a cozinha pegar uma garrafa de vinho para refinar ainda mais os pensamentos da nobre víscera.
Entre a ida e a vinda de Laurinha, Carlos teve tempo de refletir sobre como sua mulher o surpreendera. Talvez, tivesse subestimado o amor dela e sua capacidade de perdoar. E tal idéia fez brotar uma fonte inesgotável de esperança em seu peito. Estaria seu casamento salvo e sua família preservada? A carne banhada em molho madeira a sua frente dizia que sim.
Mas antes que Laurinha retorna-se com a garrafa uma coisa úmida e áspera correu por uma de suas mãos. Era seu cãozinho Serelepe que cabia inteiro na boca de um pastor alemão. O bichinho ganhou um pedaço de carne e começou a mastigá-lo encolhido entre os pés do dono. Ele não devia dar carne para o cãozinho por muitos motivos, mas principalmente porque irritava sua esposa, portanto torceu para que o bicho comesse quieto e não o denunciasse.
Quando Laurinha retornou trazia uma garrafa aberta e uma taça já cheia que ofereceu ao marido. Ela sentou também e cortou o discurso de Carlos que lhe pedia perdão e se vangloriava que ele, um pecador, tinha uma santa em casa. Laurinha acalmou de vez o coração de Carlos ao garantir que estava tudo bem, e deu a entender que o amor dela não havia morrido com o golpe traiçoeiro do marido. Carlos se calou certo de que sem dúvida alguma não merecia aquela mulher. Merecia era morrer por ter machucado um ser tão dócil, merecia morrer da pior forma possível, assim acreditava, mas ironicamente sua traição era paga com um banquete. Pois não comeria, ao menos isso. Não merecia provar nunca mais dos manjares de Laurinha.
A mulher se inquietou com a recusa do marido em provar do prato que esfriava e da taça que esquentava. Alegava que havia posto todo seu amor naquela ceia e ele a ofendia se recusando a comê-la. Porém, Carlos estava convencido que não era digno de tanto amor e consideração. Isto até que o pobre Serelepe saiu debaixo da mesa tossindo e se retorcendo. O cãozinho caiu de lado inchado a ponto de estourar e enquanto tremia como se estivesse ligado a uma tomada punha todo o sangue do corpo pra fora por quantos orifícios tivesse.
O casal assistiu a cena que não durou mais que um minuto sem pronunciar uma palavra. Os sorrisos que traziam nos lábios caíram no chão e eles puderam ouvi-los se espedaçar. Estilhaços devem ter acertado os olhos de Laurinha, pois uma hemorragia de lágrimas borrou sua maquiagem. Carlos mordeu os lábios, respirou fundo e silenciosamente levou uma garfada à boca, mastigou tranquilamente e engoliu. Depois tomou um gole do vinho e se serviu de mais uma fatia de carne. E depois outra e outra sem nunca tirar os olhos da esposa que continuava a chorar.
Carlos tinha concluído que merecia sim aquela ceia que cheirava a ressentimento.

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