Colosso aprendeu que na vida não há lugar para os fracos da pior forma quando ainda era um filhote. As circunstâncias o ensinaram a brigar antes de abrir os olhos, lutando por um peito para não morrer de fome, depois pelos ossos e pela ração, então começou a lutar pelo espaço, pelo privilégio de cruzar e por fim terminou lutando pelo mero prazer de lutar. Ele havia se tornado um cão de briga, o melhor da cidade.
Já os irmãos de Colosso eram cães de rua, vira-latas comedores de restos, ao contrário dele que vivia cercado de cuidados. Colosso era um guerreiro, um bravo guerreiro. Uma noite por semana a fazenda para cães de briga em que vivia virava o epicentro das disputas regionais de rinha. Ele era posto numa pequena arena cercada por placas de concreto junto com outro cão, às vezes até maior que ele. Há dois anos que apenas ele saia vivo da arena canina. E sua fama de matador aumentava a cada mordida desferida. Nos bastidores diziam que não havia oponentes para o Colosso, apenas vitimas.
Colosso era um animal robusto, mas seu corpo coberto por cicatrizes era repulsivo. E apesar de receber muitos elogios nos dias de luta nos outros era tratado com frieza, eventualmente com crueldade. Cães de briga não podem ser tratados com carinho, o afeto os amolece, os tornam fracos e diminuem o lucro de seus donos. Para lucrar é necessário criar um campeão nutrindo o ódio e a sede por sangue no animal. Os treinadores do Colosso sabiam muito bem disso e caprichavam para que o amor jamais adentrasse na jaula dele.
Porém, senão havia um oponente a altura de Colosso dentro da aena, o mesmo não podia se dizer do lado de fora. Em sua jaula a morte o aguardava na forma do tempo que diariamente roubava suas energias. Com os homens o Tempo deve ser paciente e na maior parte das vezes somente após setenta anos golpeando-o consegue nocauteá-lo, mas com um cão é mais simples, mal se começa a persegui-los e já tombam. E com Colosso não seria diferente, e apesar de continuar invicto, as apostas contra ele aumentavam. Nem mesmo seu dono acreditava que pudesse durar muito tempo e resolveu se prevenir.
Certa amanhã o treinador de Colossos trouxe para o canil um novo integrante para a alcatéia do patrão. Era um cão quase tão grande quanto Colosso, mas algo nele não inspirava respeito aos demais cães, talvez fosse a ausência de cicatrizes em seu corpo ou seu olhar amistoso que entre os cães significava submissão.
O novato foi preso a uma corrente nos fundos de um pátio pavimentado em que a alcatéia se exercitava. Colosso estava solto com os outros cães e reconheceu logo o ritual. Era daquela forma que os cães novos eram apresentados a rotina do lugar. O treinador entregava o infeliz de presente para a alcatéia e ficava de longe com seus ajudantes prontos para intervir se preciso. Era um teste, o cão seria atacado e se não reagisse seria poupado pelos seus, mas não pelo treinador que o julgaria impróprio para a rinha e o sacrificaria. Agora se reagisse levaria uma surra coletiva, e se o treinador e seus ajudantes não o socorressem a tempo era certo que morreria; ainda mais com o Colosso entre os atacantes. Mas se sobrevivesse seria transformado também em um assassino – de qualquer forma haveria sangue em seu futuro.
Colosso encarava o estranho do outro lado do pátio e este o encarava de volta sem demonstrar temor algum. A cachorrada aguardou que o Colosso iniciasse o ataque, mas cansados de esperar decidiram avançar. Eles cercaram o novato e começaram a rosnar e a exibir seus dentes, mas o novato continuava entretido em seu duelo de olhares com o Colosso ignorando as presas que o rondavam. Então sem aviso um dos cães o atacou por trás seguido da alcatéia inteira. Apenas o Colosso não se envolveu na cachorragem. Ele preferiu observar de longe admirado o novato saltar de lado não só escapando do bote do primeiro atacante como também o enroscando na corrente, depois escolheu a garganta do atacante maior e cravou seus dentes nela. Ao mesmo tempo uma centena de dentes espetaram suas costas e pernas. Colosso não podia mais vê-lo em meio aquela confusão.
O treinador espantou os cães com um jato d´agua de alta pressão tingindo o pátio de rosa. E onde a pouco havia um amontoado de cães se via apenas o novato encharcado e ofegante com um cadáver em seus pés. Ele continuava a encarar o Colosso que finalmente desviou seu olhar abalado e voltou para sua jaula. O novato havia passado no teste, mas o treinador não era o único que ele havia conquistado.
Enquanto o prestigio do Colosso caia, um novo campeão surgia e o nome gravado em sua cólera era Rodes. Ele tinha um nome diferente, mas foi substituído pelo treinador como uma espécie de provocação ao antigo rei do canil. No entanto o Colosso não se incomodava com as sucessivas e esmagadoras vitórias de seu vizinho de jaula, por alguma razão que não compreendia não conseguia odiá-lo e isto sim o incomodava.
Colosso andava depressivo, não latia, comia e bebia pouco e dormia muito mal. Havia perdido o brilho e um bocado de peso o que era extremamente ruim para um lutador peso pesado. Na luta seguinte Colosso descobriu como alguns quilos de massa muscular podem fazer falta. O seu adversário, um cão bem mais jovem do que ele, aproveitou seu estado debilitado para massacrá-lo. Quase não conseguiram tira-lo da rinha vivo. Apesar de ter lutado bravamente não conseguiu evitar a primeira surra de sua vida. O seu treinador o jogou na jaula sem sequer lavar suas feridas com salmoura.
O velho herói curtia a derrota encolhido em um canto, mantinha a cabeça oculta entre as patas humilhado. Seus companheiros de canil tinham se convertido em um bando de hienas que zombavam de sua queda. Ele sabia que ao perder o respeito entre os cães havia perdido o direito a sobrevivência e de agora em diante teria que lutar como nunca. Porém, o mais grave era ter decepcionado seu dono, falta grave que geralmente era punida com pauladas ou um tiro fulminante no crânio.
À noite, quando apenas os pesadelos provocavam um grunhido ou outro no canil algo de inusitado ocorreu ao Colosso; através da grade em que estava encostado alguém lambia suas feridas solidariamente. Ele abriu um dos olhos confuso achando que fosse um sonho ficando ainda mais confuso ao perceber que se tratava de Rodes. O novato acariciava na medida do possível os ferimentos no lombo de Colosso. Por um instante os dois se entreolharam perplexos a espera de uma reação agressiva um do outro, no instante seguinte a tensão se dissipou e Rodes voltou a lamber o amigo enquanto este se ajeitava como podia para facilitar as lambidas pelos vãos da grade. Naquela noite, pela primeira vez em sua vida, Colosso teve sonhos bons.
Havia algo de novo na fazenda de cães e não demorou ao treinador e o dono perceberem. Seus campeões não queriam mais lutar e não se importavam mais em comandar a matilha. Colosso e Rodes viviam se cheirando e lambendo através das grades, às vezes em estado de frenesi. E quando eram soltos para se exercitar passavam o tempo disponível brincando um com o outro como filhotes. Este comportamento estava irritando os humanos e incomodando os outros cães. A amizade de Colosso e Rodes podia despertar o que havia de melhor neles, mas certamente tinha o efeito contrário com o público.
Pouco tempo após Colosso e Rodes se tornarem próximos o destino os separou. A traumática separação ocorreu em uma manhã em que por descuido de um ajudante do treinador a porta do canil ficou destrancada e Rodes convenceu Colosso a dar um passeio pela fazenda. Colosso não podia negar um pedido de seu parceiro e o acompanhou pelos campos além das grades do canil. Nenhum outro cão os acompanharam como se farejassem perigo; Colosso também sentia o cheiro de perigo, mas mesmo temeroso seguiu Rodes saltitante por meio de um pomar florido até colinas verdejantes salpicadas de vaquinhas. Ele sabia que a felicidade compartilhada com Rodes seria cobrada em algum momento, mas isso era problema para ser resolvido depois, agora queria apenas caçar borboletas pela grama alta com seu parceiro.
Cerca de uma hora mais tarde vários homens surgiram na orla do pomar chamando pelos cães fujões. Colosso e Rodes saltaram assustados de trás de uma moita enfeitada de florzinhas brancas, eles estavam ofegantes de tanto brincar, mas seus corações disparam era de medo da punição que receberiam quando retornassem ao canil.
Colosso virou em direção ao pomar e foi avistado pelos homens que invocaram os dois com palavrões. Ele ia obedecer aos chamados, mesmo sabendo que apanharia, mas de repente Rodes o deteve e o tentou convencer a fugir dali. Colosso olhou para o horizonte, a algumas centenas de metros havia um bosque onde a liberdade os aguardava, mas Colosso não sabia o que era a liberdade e mesmo a desejando ele a temia. Infelizmente bastaram segundos de sua indecisão para que um dos homens o alcança-se e o prendesse com uma coleira. Rodes podia ter fugido, mas preferiu se entregar e compartilhar do destino de seu amigo.
A surra foi exemplar. Quando a chuva de pauladas cessou Colosso pode ver que estava novamente só em sua jaula. Ficou dias trancado sem notícias de Rodes a espera de a qualquer momento aparecessem com uma espingarda para sacrificá-lo. Mas o tempo passou, suas feridas cicatrizaram, chegou a noite de uma nova rinha e nem sinal do Rodes. Colosso não tinha dúvidas, seu amigo fora sacrificado, fazia sentido, os problemas no canil haviam chegado com ele e provavelmente partiriam com ele. Uma dor tremenda tomou conta de Colosso e em seguida virou ódio, e finalmente desejo de matar.
Colosso foi levado para a rinha naquela mesma noite e destroçou seu oponente apesar de ser maior e mais jovem que ele. E assim continuou semana após semana, mês após mês. Colosso era novamente o campeão regional, mas as coisas não eram mais as mesmas, nunca mais seriam. Ele retornará a rinha muito mais selvagem e cruel. Colosso não só matava seus oponentes como os devorava ali mesmo se não fosse impedido. No canil vivia atacando seus colegas e ferindo-os gravemente. Ele atacava inclusive as fêmeas que eram apresentadas para cruzar. Nem por sexo ele se interessava mais, queria apenas morder e morder para expressar sua dor na carne alheia. O rancor havia transformado-o em um monstro. O treinador e o seu dono nunca foram tão felizes.
Contudo a grande luta para a qual Colosso havia treinado inconscientemente desde o ninho ainda estava por vir. Na noite anterior a última vez que Colosso entraria em uma rinha ele sonhou com Rodes. Seu parceiro das boas e más horas parecia belo como nunca, pelos vistosos e olhos brilhantes, correndo por uma colina coberta de nuvens branquinhas. Era o paraíso dos cães para onde Colosso iria em breve se reencontrar com Rodes, assim acreditava. Lágrimas rebeldes e gemidos doidos escapavam enquanto sonhava.
Na rinha daquela noite havia um público maior e mais entusiasmado, isto porque não se tratava de uma luta comum, mas o embate entre o campeão regional Colosso e o Triturador, talento emergente que vinha desafiá-lo. O Triturador surgiu a quase um ano e colecionava vitórias por onde passava, diziam até que era prole do próprio Colosso,o que deixava a luta mais interessante. Mas quando Colosso entrou no ringue ansioso para engolir vivo seu oponente, independente de que fosse seu filho ou pai, recebeu um golpe que o atordoou mais que qualquer paulada que tivesse tomado na vida. Diante dele, coberto por cicatrizes, completamente retalhado e com um olho vazado estava Rodes espumando pronto para avançar raivoso contra ele assim que seu treinador o soltasse.
Colosso ficou petrificado e não viu quando Rodes saltou sobre ele. O público jamais testemunhara uma surra como aquela. Rodes arrancava nacos de carne pulsante de Colosso e seus dentes trincavam os ossos do amigo sem dó. Colosso não reagia, apenas se esquivava canhestramente. Ele suplicava na língua dos cães que o amigo parasse, que acordasse do transe ao qual provavelmente fora induzido por meio de privações e doses generosas de agressão física. No entanto, vendo que o amigo o destroçaria com mais duas mordidas resolveu mudar de estratégia e com um golpe de mestre derrubou seu adversário já exausto de lutar e sem mais fôlego algum, prendeu-o no chão pressionando-o sua garganta com uma mordida poderosa. Colosso era maior, era mais pesado e mesmo arrebentado ainda era o cão de rinha número 1 de todos os tempos.
Rodes esperou que seu oponente rasga-se sua garganta ou o sufoca-se, ao invés disso o que sentiu foi uma lambida. Ele se levanta receoso e se esforçou para compreender o que esta acontecendo enquanto os homens ao redor da rinha deixam seus cigarros caírem de suas bocas. O silêncio é total no galpão onde se realiza a luta. Os cães estão se cheirando e aos poucos seus músculos vão relaxando e uma fagulha de reconhecimento recíproco reflete nos olhos de Rodes. Agora os cães se lambem freneticamente e rolam pela rinha. Donos, treinadores e apostadores observavam a cena chocados, mas em questão de segundos o espanto vira constrangimento e esta virá intolerância. Por fim os homens viram animais perante cães se comportando de forma tão humana.
O treinador de Colosso vai buscar uma espingarda para acabar com o que ele chama de “pouca vergonha” de “humilhação” enquanto os apostadores se dividem em zombar dos donos dos cães e reclamar do desfecho da luta. Rodes percebe que Colosso está na mira do treinador e sabe que seu companheiro não tem condições de fugir, então salta sobre a divisória que separa o público da pequena arena e derruba o treinador. O cão abre um rio de sangue na garganta do homem e a espingarda dispara atingindo alguém. As pessoas correm sem rumo trombando e pisoteando uns aos outros. Outro alguém liga para a polícia e o inferno está decretado.
Rodes e Colosso aproveitam a balburdia para fugir entre as pernas e distribuir algumas mordidas em canelas ao acaso. Eles atravessam o pomar, cruzam o pasto das vacas e adentram no bosque. E protegidos pelas raízes de uma árvore e acomodados confortavelmente em um colchão de folhas voltam a se lamber e a rolar felizes como filhotes bem amados.
Dizem que muitos anos depois ainda era possível ver um cão caolho e outro maior e manco caçando borboletas na orla do bosque ou uivando juntos para a Lua. E por incrível que pareça eles nunca mais brigaram. O resto é fofoca.
MLMAnjos
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Agradeço pelo tempo dedicado as minhas histórias que de agora em diante pode considerar como nossas.
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