tag:blogger.com,1999:blog-9614613247677767722024-02-20T04:18:45.086-04:00AcalantoEspaço destinado para contos, fanfics,crônicas e comentários a respeito de Literatura, TV e Sétima Arte. Todos os textos são de autoria de MLMAnjos. Críticas e sugestões são bem vindas, principalmente quanto à correção gramátical.Obs:os textos postados aqui estão em constante reformulação.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.comBlogger22125tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-1015801541438530732010-10-29T09:24:00.002-03:002010-10-29T09:24:59.284-03:00Resenha: "A Batalha do Apocalipe" a maior história de todos os temposA literatura fantástica nunca mais será a mesma após a "Batalha do Apocalipse" de Eduardo Spohr. Foi com muita desconfiança que iniciei a leitura deste que viria a se tornar um de meus títulos preferidos - olha que eu já li quase dois mil livros nos últimos dezesseis anos, mas nada parecido com as aventuras do anjo Ablon. Foi com imensa alegria que constatei ao final da última página que não era apenas mais uma bobagem viral. Para minha surpresa, estava presenciando o nascimento de um clássico da Literatura Universal.<br />
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Não vou resumir a história, direi apenas que o sub-título: "da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo" não exagera nem um pouco. Preparem-se para uma odisséia inesquecível através dos séculos, uma jornada sem precedentes na história da literatura, ao menos não em um único volume. Pode ser que haja algo que lembre "A batalha do Apocalipse", mas não que se iguale.<br />
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Antes que os amantes do Prof. Tolkien me apedrejem permitam-me que explique que o "Senhor dos Anéis" ainda é o livro de fantasia mais bem escrito quanto à linguagem. Porém, Tolkien escrevou com extremo capricho uma história simples que ele mesmo gostava de se referir como um conto de fadas muito longo, já o Eduardo Spohr como um mero mortal deu o seu melhor para escrever um épico incomensurável. É perfeito? Já disse que ele não é Tolkien. Gostei de tudo? Também não, mas isto não muda o fato de que este foi o livro "popular" mais bem escrito que já li. Uma prova de que um livro não tem que ser um lixo literário para virar um best seller.<br />
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Contudo, não se deixem enganar pelo meu discurso inflamado. Este livro é uma obra que exige fôlego e dedicação para se ler. Não recomendo para quem gosta de leitura fácil, daquela que dá pra ler meio dormindo. Recomendo aqueles leitores que amam livros longos com centenas de personagens, uma porção delas complexas e sedutoreas, que vivem uma história rica o suficiente para ser digana de ser chamada de "Saga".<br />
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Além da aventura hiper-emocionante aos moldes de um misto de "Cavaleiro dos Zodiaco" com "Dragon-ball Z" também há um pano de fundo cultural que permeia as 589 páginas do livro. Caramba! a impressão que dá é de se estar lendo uma biblioteca inteira sobre os mais diversos assuntos, com especial atenção para temas como teologia, sociologia, antropologia, filosofia, história, arqueologia e linguagem em geral, é claro, nada aprofundado, apenas pincelado aqui e ali entre um diálogo e outra, mas o suficiente para um leitor atento aprender algo a mais sobre a vida.<br />
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Mas o que realmente me impressionou foi a forma como o autor construiu sua própria mitologia mesclando com perfeição tudo que a imaginação e a crença da humanidade pode lhe oferecer como matéria-prima. Spohr conseguiu tapar todos os buracos e desatar todos o nós, não há contradição teológica para qual não tenha arranjado um "remendo" plausível. Agora é esperar o James Cameron unir forças com Spielberg para lançarem no cinema uma versão decente da maior história de todos os tempos.<br />
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Perdoem minha empolgação, mas só lendo para compreender a dimensão desta obra. Desejo uma boa leitura e um bom apocalipse para todos vocês!MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-4255130558575731262010-10-16T14:50:00.000-03:002010-10-16T14:50:40.748-03:00Resenha: " O Livro de Tunes - Destino""Diria-se um cometa chocando-se com uma flor", isto é mais que belo, isto é Dhyan Shanasa, e não se deixe enganar pelo nome, trata-se de um autor nacional e dos mais talentosos. E é emocionado, ainda embriagado pela poeticidade de seu primeiro livro que escrevo esta resenha.<br />
Um pequeno grande livro, eis "o Livro de Tunes - Destino", primeiro volume de uma trilogia que há de se tornar um marco na literatura fantástica nacional. Imitando um maneirismo do autor, Dhyan Shanasa, "diria que" nenhum outro livro chegou tão próximo da trilogia do "Senhor dos Anéis" quanto esta modesta pérola literária de 214 páginas.<br />
A primeira vista, o cenário medieval-fantástico em que a trama se desenrola parece uma provincia da Terra-média, as personagens idem e o argumento sub-produto dos romanes de RPG: salvar à donzela, recuperar o artefato mágico e derrotar o Mal. Resumindo, um menino chamado Tunes é dado como oferenda a uma bruxa chamada Patelle, mas ele foge e unido com uma espécie de deusa-menina irá confrontar o Sauroman de saias para livrar seu mundo do mal. Até então, nada demais. <br />
Contudo, um leitor sensível nota logo no primeiro parágrafo que não está diante de um texto comum, desses que se limitam a enredos desgastados e a uma prosa aguada. Basta uma ou duas páginas de leitura para identificarmos seu estilo lírico e suave, além das escolhas certeiras de condução da história que arremata o leitor.<br />
Shanasa é um artista dos mais dignos, daqueles que buscam a perfeição de forma quase obsessiva. Profetizo que um dia tal obra-prima será reconhecida como uma das mais valiosas contribuições literárias de nossa língua. Mas,para não perder o costume, aponto uma minúscula nódoa na obra de Shanasa. A primeira edição apresenta meia dúzia de erros de digitação que se contrapõem ao perfeccionismo do autor, deslizes bobos que certamente serão corrigidos na próxima edição. Então, poderei afirmar sem receios que o "Livro de Tunes-Destino" é a jóia mais bem lapidada que já tive o prazer de apreciar como leitor.<br />
Por favor, Shanasa publique logo o segundo volume!!!MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-72658094387103140732010-09-29T11:55:00.001-03:002010-09-29T15:08:15.550-03:00Comentário: escolas literárias e a dificuldade de se definir a tendência atualEste comentário foi feito por mim originalmente no blog: http://carolchiovatto.wordpress.com de minha cara amiga, Carol Chiovatto. Achei interessante e decidi postar aqui também.Porém,esta versão foi complementada com um parágrafo a respeito da diferenciação entre gêneros literários e escolas literárias.<br />
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Acredito que a classificação por escolas literárias ainda é válida. A questão é que um estudioso da área necessita de um distanciamento de no mínimo uma geração para poder classificar uma "tendência" como "escola" de forma segura e aceitável pela Acadêmia. No presente, podemos observar e catalogar modismos e com sorte prever uma possível tendência cultural. Já um verdaderio zeitgeist ( espírito de época) somente passado um século ou mais. A escola em que o indivíduo observador está inserido pode até receber selos provisórios, mas será sempre e simplesmente a "escola atual", não vale "contemporânea" e nem "pós-moderna", pois há controversias, justamente pelo aparente boom de multiplas formas de se expressar artisticamente que pipoca diariamente mundo a fora nos mais diversos setores da Arte. <br />
Lembrando que "agrupar" autores e obras nas chamadas "escolas" é um recurso estritamente prático-didático. Não há e nunca houve um consenso a respeito dessas classificações, que querendo ou não são projeções da mentalidade de uma época em oposição a outra, o que por si só já constitui uma injustiça histórica pela análise estar contaminada por preconceitos próprios da época do analista. <br />
É ilusório crer que as ditas escolas são criadas pelos autores e identificadas pelos estudiosos, pelo contrário, são os teoricos que constroem a escola na prática, as obras são suas peças e suas ideias as ferramentas, aos autores resta reconhecer ou rejeitar tais ideias que uns julgam limitadoras e outros, reflexo inofensivo de uma sociedade pragmática.<br />
Saramago não admitia rotulos, a Ligia Bojunga Nunes também não gosta de ser taxada de autora infanto-juvenil. Já o Moteiro Lobato se orgulhava de seus estigmas literários. Machado criticou os modismos de Eça de Queirós para adotá-los em seguida - e melhor que seu desafeto. Até José de Alencar que será eternamente (será?) lembrado pela virgem de lábios de mel (quem mesmo?) cursou outra escola como podemos "ver" no "céu fluminense" (Senhora). Resumo da ópera: por mais que pretendam ter um caráter cientifico, as classificações literários são e "solamente" uma tentativa por parte de teoricos e professores de domar à subjetividade estética e liberdade criativa em prol das cartilhas - ok, há também uma "boa intenção" de facilitar o aprendizado dos alunos. Mas a verdade é que de longe as escolas perdem contorno e se fundem diante de nossos olhos em "literatura universal", mas a reciploca tambem é verdadeira, e a medida que no aproximamos e fazemos uma análise mais detalhada vemos que há mais diferenças entre os livros de um mesmo autor do que entre escolas divergentes. <br />
Porém, rotular a Arte e tudo mais que provem do homem e da natureza é um recurso legitimo e sine qua non à memória da humanidade. A generalização é um mecanismo natural da mente humana que permite a esta converter elementos extremamente complexos em algo mais simples e favorável ao raciocínio, nem que para tanto seja necessário "racionalizar" para forçar a uma lógica. Generalizar é nossa forma de adaptar o caótico a priori a uma ordem a posteriori. Contudo, no caso da literatura, "gênero" e "escola" não se equivalem, tratam-se de conceitos que se completam, mais ainda assim, distintos e que por vezes se cruzam, geralmente causando confusão. <br />
O gêneros literários são os romances, novelas, contos, peças teatraise etc., e se quisermos ir mais longe, sob o nome de gênero textual podemos seguir ad infinitum, incluindo na conta desde cartas, relatórios,resenhas até a próxima invenção textual. Já as escolas pretendem agrupar autores e obras de estilo semelhante pertecentes a uma mesma faixa histórica, tais obras e autores devem dialogar quanto à tecnica, tema e mentalidade. A filosofia que permeia à obra e a forma que a caracteriza como fruto de uma árvore diferente, porém, de um mesmo canteiro no pomar das musas é o que dita os limtes de uma escola literária. E nada impedi que autores de uma mesma escola adotem genêros literários sem qualquer semelhançca entre si, desde que um únio espiríto literário seja compartilhado por todos, mesmo que em menor grau pelos chamados autores fronteiriços. <br />
Concluo com uma estorieta que ouvi no Fantásticon 2010 ( não me lembro de quem, apenas de que foi algo que leram em um livro). Há um conto de ficção cientifica que nos fala de alienigenas que ao visitarem nosso planeta em um futuro distante exploram as ruínas de nossa civilização e ao termino do estudo de toda nossa cultura preparam o brevissimo relatório: "Por volta do ano 1 da Era Cristã nasceu um homem importante para a humanidade, depois seguiram-se um milhão de anos sem nada de relevante a ser registrado até a extinção da mesma". A uma conclusão semelhante chegou uma personagem também alienigena de Douglas Adams em o "O Guia do Mochileiro das Galáxias" ao sentenciar após uma década de "pesquisa" que o verbete "planeta Terra" no Guia não merecia mais que um "praticamente inofensiva". Isto é, com o distanciamento temporal e de mentalidade, tudo fica fácil de se "reduzir" a um mero termo genérico ou a uma definição rala e pretenciosa - mas inevitável - mesmo um universo riquisimo em sentido como o literário. Portanto, não devemos nos surpreender, caso daqui a cinquenta anos, olharmos para trás e sobre o efeito de uma epifânia descobrirmos que o século XX foi uma "coisa só", multifacetada por fora, mas homegenea por dentro, e que se não haviamos notado o obvío não foi apenas porque estavamos imersos nele, mas principalmente porque o "obvio" eramos nós. E eis que de uma hora para outra veremos toda aquela ebulição cultural tragada por uma expressão movediça como "relativismo conceitual".MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-21880038322138316872010-09-27T14:09:00.000-03:002010-09-27T14:09:50.750-03:00Resenha: "O Vale dos Anjos" O torneio dos Céus-Parte IDimitris Saloustros é um grego que morre precocemente aos 22 anos e do Além promete a sua amada esposa que retornará para seus braços nem que para isso tenha que partir o Céu em dois. Auxiliado pelo divertido Obelisco, um anjo-guia-de-enterro, e pela doce cupido Anne, Dimitris vivera uma série de aventuras no Paraíso para cumprir sua promessa. Contudo, há mais desafios e perigos no caminho do jovem herói do que ele sequer suspeita, o que não impedi que seus feitos abalem o outro mundo e culminem em um torneio a la “Dragon Ball Z” pra ninguém botar defeito.<br />
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Eu tive a oportunidade de conhecer Leandro Schulai, autor de “O Vale dos Anjos”, e admito que não sei o quanto de seu carisma (o cara é tipo Neil Gaiman) afetou minha leitura, mas me esforcei para ser imparcial.<br />
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Logo no inicio há um prólogo com clima de mistério pra instigar o leitor. Em seguida, somos apresentados rapidamente à cativante personagem principal que de cara morre e pronto – começa a aventura. Infelizmente, após os três primeiros capítulos há uma queda no ritmo da narrativa para que o autor passeie conosco por seu “paraíso particular” e apresente as personagens coadjuvantes. Uma pausa incomoda , mas necessária. Do meio para frente, agora com a atmosfera consolidada e as personagens bem definidas, a história recupera o fôlego até atingir seu ápice em um torneio sobrenatural com tons de anime.<br />
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Creio que o romance tenha como ponto alto sua linguagem ágil e envolvente que não decepcionará leitores adeptos de best-sellers como “Crepúsculo” e “Harry Potter”. Outro ponto ao seu favor são as personagens que herdaram a simpatia do autor, mas que por vezes soam demasiado caricatas.<br />
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O livro carece de concisão e aguardo ansioso para conferir o amadurecimento d’ “O Vale dos Anjos” em sua segunda parte. E é inegável que o desfecho impressiona e deixa um gostinho de quero-mais, porém espero que o Leandro conclua o torneio no próximo título e reserve os demais (seis no total) para novos desafios na pós-vida de Dimitris (guardem este nome).<br />
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Resumindo: aventura sobrenatural meio chik-lit, descontraída e empolgante. Ideal para ler no transporte de volta para casa após um dia longo de trabalho ou encostado a um travesseiro para atrair bons sonhos. Recomendo para o público jovem e para quem aposta que os anjos são os novos vampiros, e com ressalvas aos que curtem romances espíritas, não se trata de um propriamente dito, mas pode ser lido como um sem problema algum.<br />
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Enfim, mais uma promessa literária que desponta no universo fantástico nacional com o frescor e deslizes comuns aos jovens estreantes desta difícil arte de tornar sonhos em realidade.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-12127399421467819422010-09-20T12:30:00.001-03:002010-09-20T12:38:16.988-03:00Crônica: Viagem insólitaNa ocasião de uma breve passagem pela cidade de São Paulo vivi uma série de epifanias e gostaria de relatar ao menos uma. A experiência em questão ocorreu em um onibus circular que peguei do Centro Velho para Campo Limpo na Zona Sul.<br />
Era horário de pico e fui obrigado a viajar de pé espremido com mais uma centena de trabalhadores como sardinhas em uma lata. Invoquei este clichê apenas para demonstrar o quanto precária pode ser esta comporação. Sardinhas não compartilham de uma sensação termica de 53 graus de calor humano. Elas viajam até nossas mesas mergulhadas em uma saudável e refrescante solução de ômega-3 enquanto o paulistano cozinha no suor público. As sardinhas dormem embaladas pelo silêncio hermético de seu ataúde metalico. Já os paulistanos enlouquecem ao som da filarmônica de pistões, buzinas e conversa de comadres. Com a exceção dos que obstruem os ouvidos com fones e celulares, imagem esta que evocava visões de minha infância no sítio onde apenas as bestas de quatro patas usavam tapas, espécie de venda que auxilia o patrão na condução dos burros. Mas deixando latas e carroças de lado voltemos ao ônibus. <br />
Como todo leitor compulsivo que se preze sempre trago um livro comigo como bóia de salva-vidas - leitor prevenido não morrre de tédio - e daquela vez trazia um livro chamado "Portal-2001", antologia de contos científicos que mexeram comigo mais que o "balance" do circular. Foi então que, entre uma página e outra, vi uma moça devorando sem pudor algum o "Crime e Castigo" ao lado de um rapaz que lia o "O Último dos Olimpíanos". Eles pareciam distantes, mas não como seres alianados, mas como astronautas que por ousar voar alto conseguem abarcar o mundo em único olhar. <br />
Naquele ponto, lágrimas escorriam causadas por um conto chamado "Herdeiro dos Ventos" que fala justamente de como a literatura nos proporcina romper barreiras e voar alto.<br />
O protagonista de Herdeiro dos Ventos é um "passageiro da vida" como todos nós, mas diferente da maioria ele não passa a viagem dormindo ou com os olhos fixos em um único ponto, ou pior, pensa o tempo todo no final da viagem, nada disso! Ele desfruta da paisagem, ele consulta seu guia, ele dialoga com o passageiro sentado ao seu lado. Ele aproveita a viagem viajando enquanto a maioria de nós fica parado e se deixa levar. Sempre havera quem critique os herdeiros dos ventos acusando de sonharem acordados, mas eu digo, nessa vida ou se sonha acordado ou se anda dormindo. Cada um que escolha o seu bonde.<br />
Quando surgir a oportunidade de ficar preso por uma hora no trânsito de S. Paulo aproveite para explorar e apreender. Eu por exemplo descobre este belo costume da leitura no onibus e metro, mesmo que não seja dos mais saudáveis para as vistas e dos mais seguros para as bolsas. Falo por mim, quando afirmo que o prazer da leitura vale correr qualquer risco, o que não podemos é correr o risco de não ler. <br />
Naquela viagem contei dezesseis pessoas lendo. Pode parecer pouco se comparado com o número muito superior de passageiros que não estavam lendo,concordo, mas ao menos empatava com a quantidade de passageiros que posso dizer com certeza que desfrutavam da viajem. S. Paulo é muitas coisas, boas e ruins, mas a imagem que me marcou foi a de uma cidade que lê.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-75747010010913287002010-09-13T11:17:00.004-03:002010-09-20T12:38:53.376-03:00Comentário: Nada a declararImpressionado e incomodado com a enxurrada de pseudo resenhas que infestam a net resolvi também entrar na dança por desaforo. já que no oceano do anonimato (ou da fama instantânea se preferir) vale até pichar páginas inteiras com pixels sem sentido por que eu deveria negar ao mundo a oportunidade de degustar minhas abobrinhas? Também sei dizer nada com nada e reclamo minha porção neste latifúndio. Creio que não seja difícil entrar para a prostituição intelectual. Com um pouco de esforço também posso rasgar seda por quem não julgo digno da mais áspera folha higiênica. Restando-me apenas lamentar por aqueles que vagam as cegas por estes mares virtuais a procura de especiarias como resenhas e ensaios que não se limitem a resumos e ao senso comum.<br />
Cuidado, oh livre espirito! Lembre-se que uma opinião sólida é própria tanto do sábio quanto do tolo e tanto o ouro quanto o chumbo são tragados pela mais rasa das mentes.<br />
Há oasis de coerência lá fora sem dúvida, mas não busque por pérolas nesta ostra. Eu sou só mais um a roubar seu tempo com uma piada sem sentido e que, se o Google quiser, vai virar hit como tudo que não presta. Falei!MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-69351871036298201072010-02-17T11:18:00.001-04:002010-09-12T22:18:16.037-03:00O Mapa do TesouroO Mapa <br />
do <br />
Tesouro<br />
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de<br />
MLMAnjos<br />
Janeiro de 2010<br />
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Índice<br />
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Introdução pg.04 <br />
Cap.1: “Férias molhadas” pg.05<br />
Cap.2: “A arca da felicidade” pg.09<br />
Cap.3: “O mapa” pg.12<br />
Cap.4: “Os preparativos” pg.15<br />
Cap.5: “Olho-de-Peixe” pg.18<br />
Cap.6: “A Rosa dos ventos” pg.21<br />
Cap.7: “Nas profundezas do esgoto sem fim” pg.25<br />
Cap.8: “Matusalém” pg.28<br />
Cap.9: “Vovô a bordo” pg.32<br />
Cap.10: “O bicho geográfico” pg.35<br />
Cap.11: “Sorvete por toda parte” pg.38<br />
Cap.12: “Todo Guloso” pg.41<br />
Cap.13: “O Expresso Borbulhante” pg.44<br />
Cap.14: “A palavra mágica” pg.47<br />
Cap.15: “O verdadeiro tesouro” pg.50<br />
Cap.16: “A irmã do Todo Guloso” pg.54<br />
Cap.17: “Não há lugar como nosso lar” pg.57<br />
Epílogo pg.61 <br />
Apêndice pg.63<br />
Introdução<br />
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Era verão e o Sol dormia até mais tarde, talvez porque nessa época do ano era obrigado a fazer serão e a brilhar depois das seis – inclusive aos domingos e feriados. Mas naquele dia o Sol perdera o horário completamente, pensavam as irmãs Borges, pois já havia passado da hora do almoço e não havia sinal do astro no céu nublado.<br />
Laira de oito anos era morena de pele clara, robusta de bochechas salientes e cabelo volumoso e solto. Já Duda, sua irmã caçula de sete anos, era baixa e magra, mais morena e trazia o cabelo preso em um rabo de cavalo. As duas suspiravam ajoelhadas no sofá estampado da sala com os cotovelos apoiados nele; observavam entediadas gotas de chuva baterem no vidro embaçado de uma janela como insetos em um pára-brisa. Na parede atrás delas um gato de plástico balançava sua calda e tiquetaqueava como se dissesse “nunca mais, nunca mais” aborrecendo as irmãs. Na janela gotículas continuavam a escorrer como lágrimas.<br />
– Aiii!!! Se eu fosse o Sol eu também ficaria em casa num dia desses – disse Duda, a menorzinha, suspirando.<br />
– E para piorar a “força” acabou – disse Laira também suspirando.<br />
Realmente não havia energia devido a danos causados a rede elétrica por uma tempestade na noite anterior. Mudanças bruscas e acentuadas de clima como aquela se tornavam rotineiras em toda parte do mundo. De manhã fazia calor, a tarde ventava e a noite geava, ou ao contrário, ou ainda, tudo acontecia de uma vez só. Era o que os adultos chamavam de “tempo maluco”. Para as irmãs Borges deveria se chamar “estraga-prazeres”.<br />
O gato achatado na parede marcava uma hora com seus bigodes esticados e duros. Enquanto estivesse caindo uma gota d´agua as meninas permaneceriam confinadas em uma casa sem TV e internet. <br />
Ao longe, trovões ameaçavam uma nova pancada de chuva. Laira e Duda já haviam sido obrigadas a almoçar com velas, e com mais chuva a vista não tinham esperanças de que houvesse uma luz no fim do túnel. As irmãs estavam convictas de que seria um dia úmido e sem graça.<br />
Felizmente nem sempre estamos certos. Às vezes nos esquecemos que são nos dias chuvosos que surgem os arco-íris. Não que isto tenha alguma importância para os que não enxergam além das aparências. Mas para quem vê um castelo em um punhado de areia, e um foguete em uma garrafa de refrigerante, um arco-íris se mostra como realmente é: uma ponte para um lugar mágico.<br />
As irmãs Borges, por exemplo, identificariam um castelo de areia equilibrando-se na linha do horizonte no mais nublado dos dias. <br />
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Cap.1: “Férias molhadas”<br />
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Apesar das irmãs Borges estarem de férias e normalmente “férias” significarem tempo livre e diversão, as meninas se sentiam presas e entediadas. <br />
Não havia muito o quê fazer em uma casa sem “luz”, restando apenas recorrerem às velhas brincadeiras do tempo da vovó, mas mesmo estas exigiam, além de boa visibilidade, espaço pra correr e pular a vontade – algo fora de questão. A última vez que brincaram de pega-pega dentro de casa quebraram um vaso de flores e ficaram de castigo. Não que serem obrigadas a ficarem paradas em um canto “pensado” fosse fazer alguma diferença para elas nas condições atuais. <br />
Ler seria uma opção – seria. Infelizmente, apenas Laira sabia ler um pouco, e livros em casa para leitores da idade delas eram escassos. Para agravar o tédio a previsão era que choveria por mais dois dias como se o tempo quisesse obrigá-las a hibernar como ursinhas no inverno. Mas se as irmãs fossem ursos certamente que seriam da espécie do Zé Colméia, preferindo caçar uma aventura em vez de ir dormir. E uma aventura das grandes não demoraria a aparecer. E um adulto seria o responsável.<br />
Mas não seria a mãe das meninas que estava sempre ocupada com os afazeres domésticos e o artesanato que montava em casa. Nem o padrasto que saia cedo para trabalhar e geralmente fazia hora extra voltando tarde ao lar. Portanto, durante uma boa parte do dia as crianças ficavam sob os cuidados da irmã mais velha chamada Daiane, a quem caberia aprontar a aventura.<br />
A moça trabalhava à noite em uma videolocadora e ficava cansada demais pra brincar com elas de dia. No período das aulas era simples porque as suas irmãs estudavam de manhã e elas se viam apenas à noite quando ia lhes dar um beijo de boa noite. Porém com as férias a Daiane tinha que se virar nos trinta para entreter as irmãs. E elas como todas as crianças saudáveis transbordavam energia e não lhe davam trégua. A moça tinha que ser criativa para distrair as peraltinhas. Desenhos animados estavam fora de cogitação devido à queda de energia e tinha que ser algo que pudesse ocupá-las sem exigir a supervisão de um adulto.<br />
Na noite passada Daiane recordou de um velho baú com objetos antigos de sua avó e que sua mãe planejava jogar fora. “Talvez haja algum brinquedo empoeirado lá que possa entretê-las por uma tarde”, pensou em sua cama. Mas o baú conhecido na casa como a “arca da vovó” era só um pretexto para oferecer as meninas uma distração ainda maior. Naquela manhã, Daiane madrugou para realizar seu plano. Ela pegou tinta nanquim e uma folha grande de papel e desenhou um mapa nela. Depois fez algumas anotações inspiradas em uma história que ouviu em sua infância – não se lembrava exatamente do quando, nem do onde, apenas de que envolvia guloseimas. Ao final de uma hora a moça contemplou sua obra-prima. <br />
– “Não, ainda falta alguma coisa. Mas o quê?” – pensou alto com uma mão no queixo enquanto admirava seu trabalho. – Já sei! – disse de súbito virando de propósito o resto de uma xícara de café que repousava em sua escrivaninha em cima do papel; amassou a folha com as mãos e não só amarroto-a como também a rasgou em um ponto e outro deixando a folha irreconhecível. – “Agora sim!” – disse orgulhosa admirando aquela coisa parda que lembrava um pergaminho recuperado de alguma tumba milenar.<br />
Naquele mesmo dia quando as suas irmãs foram procurá-la para brincar a moça lhes disse o seguinte:<br />
– Meninas, vocês se lembram daquela antiga arca que era da vovó?<br />
– Aquela no quarto de despejo e que não devemos mexer? – perguntou Duda.<br />
– Aquela mesma – confirmou Daiane. – Pois podem abri-la e brincar com o que encontrarem lá dentro.<br />
– Sério?! – disse Laira ao mesmo tempo animada e desconfiada.<br />
– Sério, mas cuidado para não quebrar coisa alguma. Tudo que está guardado na arca é muito antigo e frágil, portanto, tratem com zelo e carinho o que encontrarem lá. Combinado?<br />
– Combinado! – apressou-se em dizer Laira. – Mas por que você não abre a arca com a gente e brinca também?<br />
– É? Por quê? – perguntou Duda também desconfiada.<br />
– Porque achei que gostariam de brincar de exploradoras e sem um adulto por perto seria mais emocionante. Não concordam?<br />
– É, faz sentido. Vamos Duda – disse Laira puxando a caçula.<br />
– Um instante crianças – chamou Daiane. – Tomem a chave da arca – disse afastando a chave antes que a Laira pudesse pegá-la. – Mas primeiro me prometam que terão cuidado para não se machucarem. Se alguém se cortar com metal enferrujado vai tomar injeção. Combinado meninas?<br />
Elas assentiram com a cabeça, pegaram à chave e foram correndo vasculhar a arca a procura de algum tesouro perdido. “E quem procura acha, caso contrário, ainda se pode criar”. <br />
Daiane foi descansar em seu quarto sem sequer suspeitar que suas irmãs estavam prestes a encontrar um tesouro de verdade.<br />
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Cap. 2: “A arca da felicidade”<br />
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Dentro da arca as meninas encontraram uma incrível coleção de quinquilharias. Havia uma boneca de porcelana com um vestido empoeirado e bochecha rosada; havia uma coleção de vidrinhos vazios de perfume, um mais lindo que o outro, eram de cristal ornamentado e ainda exalavam um leve aroma do conteúdo há séculos evaporado. As meninas também encontraram um prato de porcelana com um brasão real desenhado nele e lascado na beirada. E assim como o prato tudo no interior da arca parecia danificado ou desgastado pelo tempo e uso. Fragmentos de memória que sobreviveram – mais ou menos – aos seus donos e foram esquecidos pelas novas gerações. <br />
Mas estes exemplos eram apenas a ponta do iceberg, quanto mais as irmãs escavavam mais preciosidades descobriam. Elas se comportavam como paleontólogas que ao se depararem com um osso não enxergavam simplesmente um pedaço de cálcio seco, mas viam claramente um dinossauro correndo pela floresta balançando sua calda em perseguição a um mamífero indefeso. E com o poder da imaginação eram capazes de devolver a vida aos objetos encontrados na velha arca, inventando para cada artigo uma história, um passado, uma aventura. <br />
E foi examinando cuidadosamente o conteúdo da arca que as irmãs Borges encontraram dois artefatos realmente curiosos. O primeiro era o mais danificado dos itens, alguém o havia espatifado reduzindo-o a cacos brancos de um lado e rosa do outro. Era uma espécie de quebra-cabeças que Laira ignorou de imediato, mas que chamou a atenção de Duda que se empenhou em montá-lo com cola caseira. <br />
Enquanto a mais nova estava entretida com a tarefa de encaixar as peças de seu novo brinquedo a outra se ocupava com uma lata de biscoitos. Ela era tão antiga que não dava mais para reconhecer o desenho desbotado que outrora a ilustrava. E a tampa estava presa e não queria soltar. <br />
– Deixa essa lata pra lá, Laira. – aconselhou Duda que queria ajuda para montar seu quebra-cabeça de porcelana. <br />
– Não mesmo, escute. – pediu Laira chacoalhando a lata e produzindo o som abafado de algo leve se batendo no latão da embalagem. – ouviu? – perguntou para a irmãzinha.<br />
– Sim, mas o que é? Biscoitos?<br />
– Só se forem biscoitos petrificados. Mas deve ser algo de grande valor ou não teriam guardado tão bem. Quem sabe se tentarmos abri-la juntas? Eu seguro a lata e você puxa a tampa – sugeriu.<br />
– Eu ajudo se você me ajudar primeiro a montar meu quebra-cabeça. – disse Duda mostrando a coisa remendada no chão da qual já surgiam às feições de um animal quadrúpede e rechonchudo.<br />
– Tá bom, me passe a cola então. – disse Laira se sentado ao lado da irmã extasiada. – E segure com jeito esses cacos senão terá que tomar injeção – disse a mais velha experimentando juntar dois pedaços.<br />
Quinze minutos depois as meninas haviam reconstituído um porquinho de porcelana oco. A aparência dele não era das mais saudáveis e para melhorá-la Duda aplicou três adesivos curativos da Turma da Mônica. <br />
– Que pena, está faltando um pedacinho nas costas dele. – lamentou Duda. – Já sei, vou tampá-lo com mais um adesivo. <br />
– Não Duda, isso daí é pra ficar aberto mesmo. Acho que montamos um cofrinho em forma de porquinho. Não é uma gracinha? Feinho o coitado, mas uma gracinha.<br />
– E vai se chamar Chouriço. – disse Duda.<br />
– Por mim tudo bem, mas que tal alimentá-lo com moedas? Ele parece faminto. Ai voltamos à lata. – sugeriu Laira.<br />
– Mas nós não temos moedas. E agora o coitado terá que passar fome? – perguntou Duda preocupada com o seu mascote.<br />
– Procure direito que deve haver moedas antigas em algum lugar nesta arca. – disse Laira dando o exemplo vasculhando-a até o fundo.<br />
Infelizmente as meninas não encontraram nenhuma moeda na arca.<br />
– E agora, Laira? O que faremos? Nós trouxemos o Chouriço de volta, portanto é nossa obrigação alimenta-lo.<br />
– Calma Duda, vai ver ele é vegetariano e prefira cédulas. Nós podemos desenhar algumas e... espere! Olha o que achei. – disse Laira mostrando uma bolsa de costura cheia de botões.<br />
– Deixa eu ver – pediu Duda. – Que botões lindos!<br />
Era uma bolsa de costureira com centenas de botões de todas as variedades, a maioria de latão dourado, tinha também de madeira e ossos no formado de flores e até de animaizinhos esculpidos. <br />
– Duda, nós podemos fazer de conta que estamos visitando um país distante e exótico que usa botões em vez de moedas, que tal?<br />
– Perfeit... bem, antes temos que ver se os botões agradam o paladar do Chouriço – lembrou Duda depositando um botão no cofrinho. – Tenho a impressão de que ele gostou – disse Duda.<br />
– Maravilha, voltemos então à lata de biscoitos – disse Laira animada.<br />
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Cap. 3: O mapa<br />
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Laira segurava a base da lata firme e Duda cravava as unhas na borda da tampa puxando com força. De repente quando já estava desistindo de puxar sentiu a tampa deslizar, mas não dava mais tempo para se equilibrar e assim que a tampa se soltou elas caíram sentadas no chão.<br />
– Aí! É melhor que tenha valido a pena Laira. – reclamou Duda coçando o bumbum dolorido.<br />
– Vejamos – disse a irmã pegando um rolo de papel que caiu da lata.<br />
Elas se sentaram de pernas cruzadas ao lado da arca e verificaram o que era aquilo. Laira desenrolou devagar a folha que parecia delicada. Elas perderam a voz ao reconhecer do que se tratava. Era um mapa e no alto dele havia o desenho de um monte de jóias e a inscrição “Mapa do Tesouro”. O que não era muito original.<br />
– Duda! Estamos ricas! – gritou Laira tampando a própria boca logo em seguida.<br />
– O que foi? – perguntou Duda confusa com o gesto da irmã.<br />
– Temos que manter segredo, Duda. <br />
– É, pode haver piratas procurando pelo nosso tesouro.<br />
– Piratas não sei, mas fiscais do governo e parentes interesseiros certamente. E hoje em dia tem todo tipo de ladrão de tesouros procurando roubar mapas de crianças como a gente – disse Laira.<br />
– Então devemos contar o que achamos para a Daiane ou para a mamãe. <br />
– Também não. Eu proponho fazermos uma surpresa. Imagina a cara delas se aparecêssemos em casa com uma tonelada de diamantes?<br />
– Elas iriam ter um troço – disse Duda.<br />
– Relaxa Duda, nós mostramos a tonelada aos pouquinhos, uns dez quilos de diamantes por dia até elas se acostumarem em serem ricas.<br />
– Ai sim – concordou Duda. – Mas como faremos para encontrar o tesouro? <br />
– O Mapa diz que temos que encontrar um arco-íris primeiro. Está escrito que “uma caminhada de quarenta e dois passos nos levarão ao arco-íris e este a uma rosa e a rosa ao tesouro”.<br />
– Mas e o arco-íris? Não vejo nenhum – disse a pequena preocupada.<br />
– È dia de chuva. Todos os caminhos dão em um arco-íris, confie em mim. – explicou Laura confiante.<br />
– Não sei não, e se o tesouro estiver em um país distante? <br />
– Bem, aqui está escrito que o tesouro está na “Ilha Borbulhante” no “Deserto de Flocos”.<br />
– E onde fica isso?<br />
– No “Continente Confeitado” depois do “Mar de Li... Limonada” – leu Laira incrédula. <br />
– E como faremos para atravessar esse mar?<br />
– Há instruções no mapa e a primeira diz que a jornada para encontrar o “Tesouro Esquecido do Capitão Gagá” começa em um arco-íris onde devemos encontrar a “rosa” – Entendeu Duda? Nós temos apenas que seguir as instruções e a tal “rosa” nos indicará o caminho. Mas antes temos que nos preparar para a viagem.<br />
– Acho que a mamãe vai ficar preocupada com a gente.<br />
– Nós deixamos um bilhete. E aposto que estaremos de volta antes do jantar. Agora me ajude a juntar algumas coisas da arca nas nossas mochilas escolares para darmos início à caçada ao tesouro.<br />
As meninas estavam empolgadas de mais com a viagem para pensarem muito no que deveriam levar ou não, por isso pegavam o que encontravam pela frente e enfiavam em suas mochilas de qualquer jeito.<br />
– Duda, cadê os botões que estavam dentro da bolsa? – perguntou Laira virando a bolsa de costura pelo avesso sem encontrar um botão sequer.<br />
– Eu não sei – respondeu Duda. – Você sabe de alguma coisa Chouriço? – perguntou ao seu mascote quietinho em um canto e suspeitamente mais rechonchudo do que um minuto atrás.<br />
– Duda, quer apostar que o Chouriço comeu os nossos botões? – disse Laira levantando o cofrinho e chacoalhando-o. – Repara em como ele esta fazendo um barulho de quem se empanturrou com botões.<br />
– Você fala, Laira, como se conhecesse o som de alguém que acabou de se empanturrar com botões – retrucou a caçula defendendo seu mascote.<br />
– Ah... tá! – resmungou Laira atrapalhada com o argumento da irmã. – Não faz mal o Chouriço ter comido nossas economias, pois se os botões eram nossas moedas não vejo melhor lugar para guardá-las. E mais, vai ser divertido quebra-lo quando tivermos que usar as moedas – disse de brincadeira, assustando o porquinho que pulou no colo da Duda.<br />
As meninas não notaram, mas aquele já não era mais um dia comum.<br />
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Cap.4: Os preparativos<br />
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Daiane acompanhou discretamente os preparativos de suas irmãzinhas para a “viagem”. Observou as meninas andarem pela casa escura com cara de quem vai aprontar, mas fez que não percebeu nada de anormal. Aliás, a moça estava tão satisfeita pelo seu plano estar dando resultado que tinha se esquecido que o objetivo era justamente entreter suas irmãs para que pudesse descansar. A curiosidade era tamanha que em vez de repousar preferiu espiar pela janela de seu quarto os rumos que a brincadeira estava tomando.<br />
A garoa cessara finalmente e Laira e Duda pegaram suas mochilas escolares e levaram para o quintal nos fundos da casa. Lá juntaram os itens mais curiosos da arca. Laira ficou com a maior parte por ter quase o dobro do tamanho da irmã apesar de ter apenas um ano e meio a mais do que a Duda. Esta tinha a mochila cheia também, porém com artigos leves como uma toalha para um eventual pic-nic e um kit de primeiro socorros que se resumia a algodão, band-aid e água oxigenada. O item mais pesado era sem dúvida seu mascote Chouriço que ganhou peso após sua refeição de botões. Duda trazia o porquinho aninhado em seus braços feito uma boneca de pano, ou melhor dizendo, de porcelana.<br />
– Pronto, acho que é só. Podemos ir – declarou Laira pondo a mochila nas costas e com o mapa em mãos.<br />
– Espere – pediu Duda correndo para dentro de casa.<br />
– Onde você está indo? - perguntou Laira sem obter resposta.<br />
– Aqui está – disse Duda retornando com um pacote de biscoitos que tentava sem êxito guardar em sua mochila já cheia.<br />
– Bem lembrado. Os biscoitos podem salvar nossas vidas caso não encontremos alimentos no “Continente Confeitado”, apesar de que seria estranho um lugar com um nome desse não ter nada de comer – comentou Laira. – Mas seria bom se levássemos água. – e dizendo isso foi buscar uma garrafinha com água gelada na cozinha deixando sua irmã ocupada em arranjar espaço em sua mochila para a caixa de biscoitos.<br />
Daiane que assistia a tudo da janela de seu quarto pensou em intervir na brincadeira para confiscar a caixa de biscoitos pega sem permissão, mas não queria estragar a brincadeira das irmãs.<br />
Laira escreveu um bilhete com giz de cera azul em uma folha de sulfite que dizia “Fomos ao Mar de Cristal. Não se preocupem. Voltamos para o jantar. Beijos!” com dois rostinhos sorridentes desenhados embaixo com os nomes das irmãs. Depois prendeu o bilhete na geladeira com um imã e voltou ao quintal com Duda para darem início à caçada ao tesouro. <br />
A mãe das meninas que acabara de chegar do supermercado viu o bilhete na geladeira e olhando pela janela da cozinha viu as filhas andando como patas no quintal cobertas por um mapa tão grande quanto a Duda. <br />
– Uai, o que deu nessas meninas?! – pensou alto, mas antes que pudesse sair para perguntar as meninas o que se passava foi impedida pela filha mais velha que surgiu de repente.<br />
– Não vá lá fora mãe – pediu a moça.<br />
– Por quê?! Você pode me explicar o que está acontecendo aqui?<br />
– Posso sim. É o seguinte, elas estavam entediadas e eu muito cansada para brincar, então inventei um “mapa do tesouro” para distrai-las. E pelo jeito a Laira e a Duda estão adorando a brincadeira. É claro que no fundo elas sabem que é tudo faz-de-conta. No máximo o que farão é abrir um buraco no gramado. <br />
– Um buraco!? E você acha pouco?<br />
– Adivinhe só mãe, a energia voltou. Vamos assistir TV enquanto as meninas brincam. – convidou puxando a mãe para a sala.<br />
– Esta bem, mas irei responsabilizá-la se as meninas bagunçarem o quintal. E espere um minutinho, me parece que as danadinhas estão brincando no quintal molhado com as mochilas de ir à escola. Isso também foi coisa sua, Daiane? – disse a mãe brava.<br />
– Não, mas não posso me intrometer na fantasia delas agora. E mochilas e peças de roupas sujas é um preço barato a se pagar para vermos as meninas felizes. Ou se esqueceu de como elas estavam chateadas na hora do almoço?<br />
– Você me convenceu, Daiane – disse a mãe acompanhando-a até a sala para assistirem televisão. – Mas eu jurava que a cara feia delas era porque as forcei a comer legumes – disse a mulher saindo da cozinha.<br />
Caso tivessem dado uma última olhada pela janela talvez mãe e filha tivessem visto as meninas desaparecerem em uma poça d’agua formada pela chuva junto ao muro no fundo do quintal.<br />
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Cap. 5: “Olho-de-peixe”<br />
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O mapa diz que devemos caminhar quarenta e dois passos até encontrarmos um arco-íris – explicou Laira para sua irmã caçula.<br />
– Eu não estou vendo nenhum arco-íris – disse Duda.<br />
– Uh, vejamos – murmurou a mais velha perturbada com o comentário realista. – Eu não tenho certeza, mas só é possível dar tantos passos indo para o fundo do quintal.<br />
– Mas Laira, será que quarenta e dois passos não é muito até o muro?<br />
– Não custa experimentar, Duda. Me siga.<br />
Laira recuou até o ponto mais distante do muro que era a porta da cozinha e começou a contar os passos, mas na metade deles já havia alcançado o paredão e ensopado os pés numa poça d´agua. <br />
– Você tem razão Duda. O ponto de partida onde um arco-íris e uma rosa nos esperam deve estar no quintal vizinho – lamentou Laira baixando a cabeça tristonha. <br />
Duda se aproximou da irmã e a abraçou para consolá-la quando Laira teve uma revelação.<br />
– Como fui boba! Como fui boba! – repetia saltitando.<br />
– O que foi? O que foi? – perguntava Duda curiosa.<br />
– Olha o desenho dessas pegadas no mapa – disse mostrando a folha para a irmãzinha. – Reparou como essas pegadas são pequeninas? Pois só podem ser suas, entendeu? São quarenta e dois passos seus e não meus.<br />
Deste modo as meninas recomeçaram o procedimento recuando até a porta da cozinha e a cada passo a ansiedade aumentava. “Será que desta vez a distância seria coberta no espaço do quintal?” Elas se perguntavam à medida que se aproximavam do muro. Felizmente Duda deu seu último passo na beirada da poça em que Laira se molhou.<br />
– E agora? – perguntou Duda impaciente.<br />
– Agora procuramos um arco-íris e depois uma rosa – disse Laira ciente da inexistência de roseiras no quintal.<br />
Elas olharam e olharam, mas não viram nenhum arco-íris e pétala alguma de rosa. Passaram-se alguns minutos e a brincadeira começou a perder a graça. Laira temia que a irmã desistisse da aventura. Mas antes que a Duda perdesse o interesse pela brincadeira as nuvens se abriram e um arco-íris desceu do céu mergulhando na poça do quintal.<br />
– Arco-íris? Confere – disse Laira animada como se estivesse conferindo uma lista invisível. – Falta encontrarmos a rosa, Duda. Duda? <br />
A caçula não ouviu a irmã, entretida com uma coisa arredonda do tamanho de uma bola de futebol que emergiu na superfície da poça d´agua. Ela podia jurar que aquilo apareceu com o arco-íris.<br />
– O que é aquilo? – perguntou Duda apontando para a coisa que boiava lentamente na direção delas.<br />
– Eu não sei, mas parece inofensivo. Deve ser uma bola meio murcha que algum moleque jogou por cima do muro enquanto estávamos distraídas.<br />
– Mas não espirrou água, Laira – reparou Duda. – Será que não é um sapo? Credo! – disse fazendo careta.<br />
– Não é bicho, Duda. Veja – disse a menina pegando com as duas mãos a coisa que parecia uma bola de futebol americano. – O que é isso?! – espantou-se Laira ao notar que a coisa estava ligada por um tipo de cabo dourado como aqueles de orelhões e que saia da poça. <br />
De repente a bola piscou revelando um gigantesco globo ocular e Laira pode ver no reflexo da íris um restinho de almoço preso em seus dentes. Ela imediatamente largou o olho deixando-o cair e espirrar água ao aterrissar na poça, em seguida limpou o dente discretamente com a língua.<br />
– Hei! Mais cuidado! Querem cegar o meu periscópio? – disse uma voz feminina e brava vinda do olho que havia se levantado como uma serpente marinha.<br />
– Laira tem alguma coisa a mais saindo da poça – disse Duda abraçada ao seu porquinho.<br />
As meninas viram uma escotilha emergir logo abaixo do olho e dela sair uma moça com roupa de capitão. A moça era jovem, bela e tinha uma voz encantadora, porém séria. <br />
– Não há o que temer jovens aventureiras. Eu sou Rosa e este é “Peixuxa”, meu submarino e viemos ajudá-las na caça ao tesouro. Mas é melhor nos apressarmos se quiserem retornar a tempo para o jantar. <br />
A moça fez um gesto com as mãos e o olho enrolou seu cabo nas meninas e as puxou para dentro da escotilha. Elas não tiveram tempo de protestar, quando deram por si já estavam confortavelmente acomodadas na barriga do Peixuxa.<br />
– Que maneira de começar uma aventura, não é? Engolidas por um submarino. Imaginem o que virá depois. – comentou a capitã guiando-as pelo interior do Peixuxa que se mexia estranhamente como se estivesse... vivo.<br />
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Cap. 6: “A Rosa dos Ventos” <br />
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Eu sou Rosa dos Ventos, também conhecida por “Louca de Pedra” porque zombo do perigo – disse dando uma piscadela. – E vocês são Laira e Duda, correto? – disse riscando dois nomes em uma lista presa a uma prancheta.<br />
– Correto – respondeu Laira. – Você estava nos esperando?<br />
– Evidente que sim. Eu sou a guia dos “aventureiros” e este tem sido meu papel desde que o Capitão Gagá esqueceu de seu tesouro.<br />
As irmãs Borges ainda não haviam assimilado aquele papo de guia e o lance do peixe-submarino. No entanto não dava para não simpatizar com a Capitã, uma pequena grande mulher, baixa em estatura, não mais que um metro e sessenta, porém tão cheia de alegria, determinação e outras qualidades que contagiava o ambiente. Porém, de perto seus olhos castanho-escuros pareciam turvados lá no fundo, no leito da alma, por uma dor antiga. E ela sorria como se quisesse disfarçar seu sofrimento.<br />
– As duas devem estar se perguntando o que está acontecendo? – disse a capitã cruzando um corredor estreito com as irmãs.<br />
– Na verdade, gostaria de saber se estou sonhando ou acordada – disse Laira abismada com o que via. <br />
– Eu também – emendou Duda que tentava acalmar o Chouriço que só aquietou quando sua dona o deixou se esconder em sua mochila.<br />
– Garanto meninas que não há diferença – a moça começou dizendo. – Estar dormindo, estar acordado, tanto faz. É tudo sonho, a vida é uma seqüência de sonhos, uns mais reais do que outros, mas nunca tão sólido que se sustente caso deixemos de acreditar neles. E coisas estranhas, as vezes maravilhosas, acontecem a todo momento em algum lugar do mundo com alguém. Adivinhem, é a vez de vocês terem um dia fantástico.<br />
– Quer dizer que você irá nos levar até a Ilha Borbulhante para recuperar o tesouro esquecido do Capitão Gagá? – perguntou Laira.<br />
– Prometo levá-las próximo à costa, depois disso terão que descolar uma nova carona. Mas não se preocupem encontrarão muitos amigos pelo caminho – é obvio que também não faltarão inimigos. Mesmo porque não tem a menor graça uma aventura sem inimigos. E torço para que topemos com alguns, pois o Peixuxa e eu não nos exercitamos faz tempo. – disse a moça entrando na ponte de comando que era uma cabine ampla com duas janelas redondas tão grandes quanto às paredes.<br />
– Uau! – suspiraram as meninas.<br />
Na frente delas desfilavam milhões de peixes multicoloridos e de todos os tamanhos e formas. Havia polvos, águas-vivas, tartarugas marinhas e arraias entre outras criaturas aquáticas que as irmãs conheciam apenas da televisão. <br />
– Dizer que esta cena é simplesmente bonita seria um insulto à natureza, ela é magnífica e infelizmente raríssima. – informou a Capitã. – Mas deixemos os assuntos tristes para quando estivermos de estômago cheio. Que tal tomarmos lanche da tarde? Topam?<br />
Laira e Duda se entreolharam e concordaram sorrindo que um lanche seria formidável. <br />
– Fantástico! – exclamou a capitã. – Será uma ótima oportunidade de nos conhecermos – disse apertando um botão na parede que fez uma mesa retrátil surgir do chão e se montar sozinha. – E falando em se conhecer, as senhoritas ainda não se apresentaram. Digo quem é Laira e quem é Duda, aliás, pensei que Duda fosse um menino – disse a Capitã.<br />
As meninas riram da confusão da Rosa e se apresentaram formalmente. Mas a Capitã parecia distante, centrada em algo que via pelas grandes janelas. <br />
– Algum problema? – perguntou Duda estranhando o comportamento da Capitã.<br />
– Não se preocupem meninas. É que estamos entrando no “Mar de Esgoto” e terei que assumir o comando da nave pessoalmente. Com licença – disse Rosa se levantando e repondo seu chapéu de capitão que havia retirado para lanchar. – Mas, por favor, fiquem a vontade e aproveitem o lanche.<br />
Rosa apertou outro botão na parede e três tigelas brotaram na mesa acompanhadas de talheres. E do teto desceu uma espécie de caldeirão que mãos mecânicas depositaram no centro da mesa. Uma das mãos mecânicas retirou a tampa e liberou um aroma quente de sopa. As garotas se decepcionaram ao constatar que se tratava de sopa, o sabor não sabiam, e não dava para perguntar para Rosa que estava concentrada guiando o Peixuxa por águas escuras.<br />
– Eu pensei que iríamos comer bolinhos e tomar chocolate quente. Aposto que é de legumes! Não basta termos almoçado legume? Também temos que comê-los como sobremesa?– reclamou Duda que ficara enjoada só de sentir o cheiro gorduroso da sopa.<br />
– Devemos ao menos provar por educação. – disse Laira também contrafeita, mas explorando assim mesmo o caldeirão com uma concha. – Hei?! – gritou Laira segurando a concha com ambas as mãos sem poder retirá-la do caldeirão. <br />
– O que foi? A sopa está marrenta?– perguntou Duda fazendo piada.<br />
– É sério Duda, tem alguma coisa segurando a concha. Nossa!...<br />
Laira ficou boba ao ver uma porção de tentáculos saírem do caldeirão e agarrarem ela e a irmã.<br />
– De novo não! – gritou Duda.<br />
Na superfície da sopa surgiu um bico de polvo e ele parecia faminto ou no mínimo muito irritado. Provavelmente ofendido por ter sido confundido com uma sopa de legumes.<br />
– Algum plano Laira? – perguntou Duda a meio caminho de mergulhar de cabeça no bico escancarado do polvo.<br />
Laira que estava sendo chacoalhada no ar tinha um plano sim de como escaparem daquela situação cabulosa. <br />
– Rosa! Socorro! O lanche quer nos devorar! – gritou para a Capitã.<br />
– Agora não querida. Estou ocupada desviando de lixo. – respondeu Rosa sem se virar. – E não fale de boca cheia querida – acrescentou.<br />
– Aperta o botão! – gritou Duda para sua irmã.<br />
– “Bem lembrado” – pensou Laira chutando o ar e a parede até acertar o botão. E tão rápido como surgiu a mesa desapareceu com seu fruto do mar letal. <br />
– Meninas, a mãe de vocês não ensinou que é feio “brigar” com a comida? – comentou Rosa vendo as irmãs no chão. – Ok , não teve graça, acho que meu ensopado não cozinhou direito. Mas tenho boas notícias. – disse empolgadíssima. <br />
– O quê? – perguntaram as irmãs ainda pálidas pelo susto anterior.<br />
– O radar captou um monstro marinho se aproximando! Não é fantástico? – perguntou aos rostinhos apavorados.<br />
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Cap. 7: “Nas profundezas do esgoto sem fim”<br />
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O Peixuxa havia entrado no “Mar de Esgoto” onde só se podia navegar com o auxilio de radar devido à escuridão de suas águas. <br />
– Crianças, não costumo vir para essas bandas porque o contato com águas tão poluídas não faz bem ao submarino, enferruja suas escamas, entope o distribuidor e embaça os visores. Entretanto é um atalho para se chegar ao Mar de Limonada. E, além disso, é uma excelente oportunidade de vermos um monstro marinho – explicou Rosa.<br />
– Segundo essa tela, tem um bem a nossa frente. – disse Laira vendo um desenho piscar no painel de navegação.<br />
– Eu não vejo coisa alguma. – comentou Duda feliz por não poder ver o tal monstro.<br />
– Não se desespere querida – disse Rosa interpretando mal o comentário de Duda. – Posso resolver isto com um bater de palmas – disse a capitã batendo palmas com animação.<br />
Imediatamente luzes se acenderam na ponte de comando que também estava escura lançando um jato de claridade pelas janelas. A luz acertou em cheio a carranca de uma criatura gigantesca com dentes do tamanho de postes telefônicos que vinha nadando furiosa na direção do submarino.<br />
– Assumam seus postos tripulação e preparem-se para o combate! –ordenou a Capitã Rosa.<br />
As meninas permaneceram onde estavam hipnotizadas pela visão da coisa monstruosa que disparava para cima delas como um torpedo esfomeado.<br />
– Alô! Alguém em casa?! É com vocês meninas! – gritou Rosa despertando as irmãs e mostrando-lhes os lugares que deveriam assumir. – Prendam os cintos de segurança e observem as janelas a frente de vocês – instruía a Capitã. – Há dois botões redondos no painel abaixo da janela, o azul aciona um farol e o vermelho dispara cargas de sabão. Atirem sem dó!<br />
O monstro não esperou que as meninas assimilassem as instruções e começou o ataque impiedoso. Ele devia ser dez vezes maior que o submarino e tinha o formato de serpente. Tentava abocanhar o Peixuxa ou se enrolar nele, mas o submarino desviava-se com destreza recorrendo a manobras evasivas surpreendentes. Já as meninas não conseguiam mirar na criatura para acertar suas cargas de sabão.<br />
– Capitã Rosa, movendo-se assim não dá para acertar o monstro – gritou Laira. <br />
– Sem problema. Darei um jeito de ficarmos pertinho do monstro. – disse Rosa desligando os motores.<br />
As meninas não acreditaram quando perceberam que o submarino havia estacionado. “A Capitã seria louca?” pensaram consigo. O monstro que vinha perseguindo a nave não perdeu tempo e a abocanhou engolindo-a. Houve uma forte turbulência e faíscas saltaram dos painéis e as luzes piscaram enquanto o Peixuxa era pressionado pelos músculos do esôfago da serpente marinha.<br />
– Perto suficiente? – perguntou Rosa para as irmãs que não acharam graça. <br />
– Acho que perto demais. Se dispararmos as bolhas agora as cargas detonariam o submarino também – explicou Laira. <br />
– Posso resolver isso também. – disse Rosa apertando um grande botão roxo com a mensagem “ Não aperte” escrita embaixo. <br />
As irmãs Borges se encolheram a espera de outra rodada de turbulência, mas nada de violento aconteceu. Aparentemente o único efeito de Rosa ter apertado o botão roxo foi pararem de deslizar pela goela do monstro. “Talvez tivesse liberado uma âncora” pensaram as meninas que desconheciam o detalhe de que diferente dos navios, submarinos não possuíam ancoras. <br />
– Relaxem meninas. O Peixuxa está inchando como uma bexiga de festa e quando eu mandar deixem o dedo pressionando o botão vermelho que disparará um jato continuo de espuma. E sairemos voando daqui.<br />
A turbulência retornou com a Serpente se debatendo para se desengasgar. Pelas janelas podia se ver a boca logo a frente se abrindo. <br />
– Agora! – gritou Rosa.<br />
As meninas apertaram os botões simultaneamente e encheram o esôfago do monstro com um oceano de espuma. O submarino saiu meio desnorteado a mil por hora deixando a figura da Serpente se retorcendo nas trevas do Mar de Esgoto. Rosa tomou o controle da nave e logo estavam em águas límpidas novamente.<br />
– Foi divertido, não foi? – a Capitã perguntou às irmãs.<br />
– Acho que vou vomitar. – disse Laira.<br />
– Deixa disso, a diversão está só começando – anunciou Rosa.<br />
– Sem querer ser chata – disse Duda, mas vai demorar muito ainda para chegarmos no Mar de Limonada?<br />
– Vejamos... vejamos. Chegamos! – informou a Capitã consultando um GPS.<br />
– Legal, eu quero provar um gole desse mar. – disse Duda lambendo os lábios com cara de gula. – Lá de onde viemos o mar é salgado e não se pode beber.<br />
– Infelizmente ou daqui também não dá pra beber, está sujo. É o que acontece quando nos esquecemos de cuidar dos oceanos, mas isto é só um aperitivo indigesto para o que verão no Continente Confeitado. E só como curiosidade, saibam que o Mar de Limonada nem é de limonada.<br />
– Não? do quê é então? – perguntou Duda.<br />
– É de maçã verde. Mas vocês conseguem imaginar um lugar chamado “Mar de Suco de Maçã Verde”?<br />
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Cap. 8: “Matusalém”<br />
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Quanto mais tempo às irmãs passavam naquele admirável mundo novo mais impressionadas ficavam. E estavam ansiosas por descobrir qual a próxima surpresa que as aguardava, a qual não demorou em se revelar.<br />
– Rosa, você irá nos levar até o litoral? – perguntou Laira consultando o mapa do tesouro.<br />
– Lamento marujas, mas as águas litorâneas são rasas demais para o Peixuxa. Mas sem estresse, como guia de vocês tenho a obrigação de mantê-las no caminho certo e ajuda-las a superar os obstáculos.<br />
– Então como faremos para terminar a viagem? – perguntou Duda aflita.<br />
– Já providenciei uma carona – tranqüilizou-a Rosa. – Irão estranhar um pouco no início viajar no Matusalém, mas logo se acostumarão com o cheiro. O durão é ter que aturar aquela tosse do Capitão Gagá – Matusalém? Tosse? Explique-se melhor, por favor. – pediu Laira.<br />
– É o seguinte meninas, logo acima na superfície tem um navio pirata. O velho Matusalém, tão antigo e decrépito que se passaria muito bem por um navio fantasma. Ele está sob o comando do Capitão Gagá, um velhinho que gosta de brincar de pirata, mas que é incapaz de fazer mal a uma mosca. Aconselho a entrarem na brincadeira dele, farão um velho feliz e ainda ganharam uma carona até a terra firme.<br />
– Mas Rosa, esse Capitão Gagá por acaso é o mesmo que enterrou o tesouro que estamos caçando? – perguntou Laira.<br />
– É sim – respondeu secamente como se isso não tivesse importância. – Mas ele não enterrou, a lenda diz que ele esqueceu o tesouro. Portanto, basta não que não toquemos no assunto.<br />
As meninas anotaram mentalmente que não deveriam tocar no assunto enquanto estivessem na presença dos piratas e se aprontaram para emergir. Rosa acionou alguns mecanismos e o Peixuxa flutuou até a superfície. A escotilha foi aberta e as irmãs puderam ver o céu novamente.<br />
– Meninas me deeem um beijo e um abraço – disse despedindo-se de suas passageiras. – Ali vem vindo o Matusalém – disse apontando uma caravela caindo aos pedaços e que avançava cambaleante exibindo uma bandeira desbotada e remendada que um dia foi negra com o desenho de um esqueleto. <br />
– Será que não seria mais seguro irmos nadando? – sugeriu Duda que não sabia nadar.<br />
– Quem sabe de perto não seja tão ruim, Duda – disse Laira otimista.<br />
– Vai por mim, de perto é pior – disse Rosa se divertindo com a situação. – Agora tomem esses salva-vidas – disse empurrando as meninas para a água. – Laira e Duda foi um prazer conhecê-las. Voltaremos a nos ver em breve, mas no momento tenho que correr para ajudar três amigos a cruzarem o “Mar Incandescente”. E confiem em mim, não as deixaria com piratas se corressem algum perig... – e sumiu por trás da escotilha que afundava na água. <br />
– Mais que guia louca fomos arranjar.<br />
– Mas ela não mentiu – disse Duda. – Isto não é limonada e se for de maçã, então está vencido – reclamou cuspindo o suco que entrara em sua boca.<br />
As irmãs ficaram boiando por alguns minutos até serem resgatadas pelos piratas do Matusalém. Uma inusitada tripulação de velhinhos tortos e rabugentos. Os pobres piratas fizeram uma modesta algazarra no convés para receber as irmãs presas em uma rede de pesca que haviam lançado sobre elas, mas mal começaram a pular, balançar os braços e gritar e já estavam todos tossindo e reclamando das articulações e reumatismos. <br />
– Coitadinho dos vovôs – comentou Duda. – Aquele no canto está pescando com vara sentado em uma cadeira de rodas e aquele outro deve usar fraldas para adulto – disse apontando para um pirata afastado do grupo de calças inchadas e que parecia estar se aliviando de pé.<br />
– Não aponte que é feio, Duda. Lembre-se devemos tratar bem os mais velhos principalmente os mais velhos. De qualquer forma temos que fingir estarmos apavoradas e enganá-los para nos levarem ao litoral. Então...<br />
As irmãs foram interrompidas pela gravidade que as puxou para o assoalho do convés sem cerimônia assim que alguém soltou as amarras da rede. A primeira coisa que as meninas fizeram ao se recomporem do tombo foi verificar o conteúdo das mochilas.<br />
– Não quebrou nada na minha mochila e na sua Duda? O Chouriço deve ter virado caco de novo.<br />
– Bem que podia – disse Duda olhando brava para o porquinho que estava com a cabeça pra fora da mochila com ar levado. – Dá pra acreditar Laira!? Esse pestinha comeu todos os nossos mantimentos, inclusive a caixa de biscoito. E quando digo a “caixa de biscoito” quero dizer que o Sr. Chouriço devorou os biscoitos e a caixa. Feio! Porco feio! – repetia pertinho do focinho do suíno que aproveitou para lambê-la carinhosamente. – Quem eu quero enganar? Não dá para ficar brava com este pedacinho torresmo. – disse beijando o seu focinho e fazendo as pazes.<br />
– Isso explica o porquê dele ter ficado quietinho no submarino. E eu que achava que fosse por medo. – ia dizendo Laira.<br />
– Desculpa interromper – disse um pirata com chapéu de três pontas, a conversa parece estar boa, senão se importam são minhas prisioneiras e gostaria que seguissem a etiqueta, isto é, encolhendo-se e pedindo clemência ou irão desmoralizar meus “rapazes” – disse se referindo ao “clube da terceira idade” que se arrastava pelo convés.<br />
As meninas não tiveram que adivinhar que aquele pirata era o capitão, pois havia um crachá em seu casaco. Todos tinham crachás para caso se esquecessem do nome ou posto. Neles também estavam anotados os horários em que deviam tomar os seus remédios. Mas aquele pirata em especifico realmente se destacava entre seus colegas “dinossauros”. Ele devia ser o mais alto com cerca de dois metros, mas era tão curvado que sua cabeça ficava a um metro do chão e sua corcunda não permitia ver o que havia atrás dele. No nariz de ameixa ostentava lentes redondas e grossas como fundos de garrafa, ele usava um andador para se locomover e tinha um papagaio empalhado sobre o ombro direito.<br />
– Creio que estamos diante do lendário Capitão Gagá? – arriscou Laira fingindo-se admirada.<br />
– Cagá!?! Mas será que não se ensina mais bons modos as donzelas hoje em dia?!? – reclamou o capitão revelando que sua audição também já havia vencido o prazo de validade há séculos.<br />
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Cap. 9: “Vovô a bordo”<br />
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– Eu disse “Gagá” – repetiu Laira.<br />
– Hen? – fez o capitão pondo uma mão em forma de concha no ouvido. – Não importa. As duas são minhas prisioneiras e espero que se comportem como tal. E como que é mesmo que prisioneiras devem se comportar? Eu ando meio esquecido atualmente. – perguntou aos seus comparsas que deram de ombros tão esquecidos quanto.<br />
– Laira, os vovôs estão ruins da cabeça – disse Duda com dó.<br />
– Vai vê é falta de vitaminas – comentou a mais velha.<br />
– Mais que tanto cochicham donzelas? Estão conspirando para fugir, é? – perguntou o capitão.<br />
– De forma alguma “vossa capitania” – disse Laira achando que esta fosse a forma correta de se tratar um capitão –, nós comentávamos apenas como seu barco é magnífico.<br />
– Pinico? Por favor, alguém apresente a comadre para esta menina – ordenou o Capitão Gagá. <br />
– Não queremos incomodar Capitão. Deixe a comadre descansar – disse Laira achando que a comadre fosse a madrinha de alguém. – Capitão, eu e minha irmã gost... hei capitão acorde! – chamou Laira despertando o pirata que cochilou no meio da conversa.<br />
– Ah? O quê? Onde? E quem são vocês? – acordou assustado.<br />
Laira estava cansada daquele diálogo maluco.<br />
– Posso tentar? – pediu Duda para a irmã.<br />
– Bem, pior não pode ficar – disse cedendo a fala para a caçula.<br />
A menina deu uma tocidinha antes de começar e um dos piratas ofereceu um xarope para ela. Duda recusou educadamente o remédio e disse para o capitão:<br />
– Eu me chamo Duda, na verdade quem me chama são os outros – acrescentou, e esta é minha irmã mais velha... mais velha não, do meio, pois também tem a Day que não gosta de ser chamada de velha e...<br />
– Duda, vá direto ao ponto. Está deixando-os confusos e a mim também – observou Laira impaciente. <br />
– Certo, certo. Capitão, nós procuramos um tesouro...ops!<br />
Aquela palavra surtiu um efeito revigorante na tripulação que rejuvenesceu por um instante reacendendo o brilho dos olhos embaçados pela catarata. <br />
– A mocinha por acaso disse “tesouro”? – disse o capitão e demais piratas repetiram a palavra em coro. <br />
– Quando interessa os senhores ouvem até demais. Minha irmã disse que procuramos um “besouro” – arriscou Laira improvisando uma mentira.<br />
O Capitão fez cara de desconfiado e sacando uma bengala que trazia numa bainha de espada balanço-a sobre a cabeça das meninas. Outros tentaram imitá-lo, mas alguns que dependiam das bengalas para ficar de pé caíram sentados no convés.<br />
– Não me façam de tolo! Coff! Coff! – gritava e tossia o capitão. – Vocês têm um tesouro e é melhor passa-lo ou sentirão o gosto de minha lâmina... digo, de minha bengala! Coff! Coff!<br />
– Teremos que mostrar o mapa para eles – disse Laira baixinho para Duda. – Desta vez não tem escapatória. <br />
– Não desista ainda, Laira. Eu nos meti nessa confusão, eu resolvo – Veja lá o que você vai fazer. Esses piratas não parecem ter senso de humor. – disse Laira depois que um deles tentou assustá-la rosnando pertinho do seu rosto até sua dentadura saltar da boca e cair no mar.<br />
Duda riu da cena enquanto retirava sua mochila encharcada de suco de maçã e abria todo o zíper.<br />
– Pode sair chouriço. Não seja tímido. – disse para o porquinho que colocava o focinho molhado para fora e investigava o ambiente. <br />
– Que espécie de plano é esse Duda? – perguntou sua irmã intrigada.<br />
– Já vai ver. Vamos chouriço. Diga olá ou ronc-ronc para os vovôs. E não esquenta que eles devem comer apenas mingau e gelatina.<br />
Ouvindo isso o porquinho tomou coragem e saiu da mochila e pulou no colo de sua dona.<br />
– O que esse porco tem a ver com o tesouro?! Por acaso ele fareja ouro como fazem os porcos franceses que caçam trufas na floresta? – indagou o capitão.<br />
A menina se distraiu um pouco imaginando que na França bombons recheados davam como frutos nas florestas, mas estava apenas confundindo a sobremesa com outro tipo de trufa, um cogumelo que também era muito saboroso.<br />
– O Chouriço não precisa caçar tesouro algum. Ele já encontrou muitos e os guarda dentro de si. Posso demonstrar se alguém entre os senhores puder me emprestar um laxante.<br />
Praticamente todos no convés levantaram a mão se oferecendo para ceder um pouco de laxante. Pelo jeito não era só as meninas que estavam presas no Matusalém, o intestino dos piratas também.<br />
Duda deu um vidro de laxante para o Chouriço cheirar e guloso como era engoliu o vidro inteiro. Depois um porco fez careta, grunhiu e esperneou, mas era tarde, o remédio começava a fazer efeito. E na falta de um toalete para suínos o Chouriço recorreu à mochila largada no chão para obter alguma privacidade enquanto atendia o chamado da natureza.<br />
Cap. 10: “O Bicho Geográfico”<br />
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Chouriço saiu da mochila e se deparou com os piratas vidrados nele como se fosse levantar voo a qualquer momento. <br />
– Não precisa ficar constrangido, bobinho – disse Duda pegando a sua <br />
mascote no colo. – Vovô, é todo seu. Mas não vá gastar tudo de uma vez com fixador para dentadura – disse passando a mochila para o capitão.<br />
O velho pirata examinou a mochila e ficou maravilhado com o que viu. Ele se virou e anunciou à tripulação:<br />
– O Capitão Gagá conseguiu novamente! Esta mochila está cheia de moedas de ouro e florzinhas também. Embora o cheiro não seja dos mais agradáveis creio que ele vale o resgate de um rei – dizia orgulhoso.<br />
– Parabéns Duda por pensar rápido – elogiou Laira afagando a cabeça da irmã.<br />
– O Chouriço fez a parte mais difícil – lembrou Duda.<br />
– É verdade – concordou Laira. – Parabéns para você também Chouriço – e fez um cafuné nele também.<br />
– Atenção tripulação! Coff! Coff! – voltou a dizer o capitão. – Já temos nosso tesouro, nos resta cuidarmos das donzelas indefesas.<br />
– Cuidar como? No sentido de nos mostrar nossos camarins e nos servir um refresco? – perguntou Laira esperançosa ao capitão.<br />
– Claro que não mocinha. Isto não é um cruzeiro de férias. Iremos cuidar no sentido de dar cabo de vocês – disse com frieza.<br />
As meninas queriam matar a Rosa por tê-las metido naquela enrascada. “Inofensivos, sei, como leões velhos, porém famintos” – pensaram as irmãs enquanto a pirataiada as encurralava em um canto.<br />
– Vejamos, como nós piratas costumamos executar nossos prisioneiros mesmo? – perguntou o capitão para seus subordinados.<br />
– Nós jogamos a comadre neles – sugeriu alguém.<br />
– Não, isso é o que fazemos com a enfermeira – disse outro. – Já sei, nós forçamos eles a verem fotos dos nossos netinhos.<br />
– Também não – disse o capitão, tinha a ver com andar em algum lugar. É, mas não me recordo aonde que era.<br />
– Na praia! – disse Laira reparando nos últimos quinze minutos o Matusalém havia se aproximado bastante do litoral.<br />
– Na praia? Está certa disso? O que pode haver de tão pavoroso numa praia? – perguntou o capitão esforçando-se para não ser logrado.<br />
– Como O QUÊ? – disse Laira dramática. – Quer mais do que toda aquela areia incômoda entrando embaixo da roupa? E o bicho geográfico? Prefiro enfrentar um tubarão a enfrentar um bicho geográfico.<br />
– Pois irá enfrentar o bicho geográfico! – declarou o capitão.<br />
– Oh! O bicho geográfico não! – suplicavam as meninas rindo por dentro. – Por favor, tudo menos... rsrsrs... o bicho geográfico!<br />
– Sinto muito, donzelas, mas temos uma reputação de malvados a zelar. Imaginem se formos denunciados ao sindicato dos piratas. Iriam caçar nossa licença de pirataria. E infelizmente estamos velhos demais para fazermos outra coisa. – explicou o capitão.<br />
– Então tá. Como faremos para chegar até a praia. – disse Laira esquecendo-se de fingir estar apavorada. – Digo, já que não tem jeito mesmo – se corrigiu a tempo. <br />
O Capitão mandou que preparassem um bote. Não foi uma operação fácil, apesar de ser simples, pois aqueles marinheiros não tinham mais o vigor necessário para trabalhar em um navio. E para não atrasar a caçada ao tesouro as meninas se viram obrigadas a se oferecerem para descer o bote até a água e a remá-lo até a praia. <br />
– Estou começando a sentir saudade do tédio, Laira – disse Duda.<br />
– Temos que fazer por merecer o Tesouro – disse sua irmã.<br />
– O quê? Coff! Coff! – perguntou Gagá que fez questão de levar suas prisioneiras pessoalmente até a praia.<br />
– Nada não, Capitão – disse Laira.<br />
– E por que eu nadaria se pedi pra descer o bote. Que donzela tola! – disse Gagá sem entender porque as meninas riam a caminho da morte.<br />
Assim que alcançaram terra firme o Capitão cutucou as irmãs com sua bengala para fora do bote.<br />
– Gostaria de ficar e assistir o bicho geográfico devorá-las, mas tenho um tesouro para guardar – desculpou-se o capitão. <br />
– Não vá esquecer onde o enterrou desta vez – gritou Duda que já ia longe com sua irmã.<br />
Mas o capitão não enterrava mais tesouros, porque nunca se lembrava do lugar. Hoje em dia depositava tudo no banco e depois esquecia a senha.<br />
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Cap. 11: “Sorvete por toda parte”<br />
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As irmãs Borges estranharam a areia da praia desde a primeira pisada. Não que fossem especialistas em areia de praia, mas sem dúvida alguma havia algo de incomum com aquela. <br />
– Laira – disse Duda com seu cofrinho nos braços.<br />
– Sim? – disse sua irmã sem tirar os olhos do mapa que estudava durante a caminha pela praia.<br />
– É impressão minha ou esta areia é cremosa ao invés de ser fofa?<br />
– Já que tocou no assunto, me parece também que sim. – respondeu Laira parando para pensar a respeito. <br />
– E se observarmos bem não tem grãos. Ela é formada por uma massa, e não é sequer quente, é fria. – acrescentou Duda.<br />
– Não há nenhuma informação sobre isso no mapa, mas estando onde estamos não me surpreenderia se estivermos andando sobre sorvete.<br />
Ao ouvir insinuarem que o solo era comestível o Chouriço saltou dos braços de Duda e mergulhou de focinho abrindo um buraco no chão. Ele sumiu por segundos surgindo dois metros mais a frente. O porquinho estava todo lambuzado e hiper feliz. “Aquele devia ser o céu dos porquinhos”, pensou Chouriço. Duda não resistiu à tentação e provou um tiquinho também.<br />
– Não coma isso! – ralhou Laira.<br />
– Por quê? – indagou Duda chupando um dedo untado com sorvete.<br />
– Ora por quê?! A mamãe não nos ensinou a não comer coisas achadas no chão? – disse Laira sem estar muito certa se a regra se aplicava aquilo.<br />
– Mas o Chouriço pode – alegou Duda.<br />
– O Chouriço é porco... deixa pra lá. Me diga, tem gosto do quê?<br />
– Parece chocolate branco com um leve toque de maçã verde.<br />
– Provavelmente quando a maré está cheia o suco de maça banha essa parte da praia misturando os sabores. Aposto que atrás daquelas dunas o sorvete deve ter um gosto melhor – disse Laira apontando uns morros de sorvete mais para o interior do Continente.<br />
As meninas subiram no alto das dunas e puderam ver quilômetros em todas as direções. Elas viram na beira do mar o Matusalém ainda ancorado na baia, e no lado oposto uma região montanhosa desprovida de vegetação. E lá no horizonte atrás das montanhas despontava um vulcão.<br />
– Segundo o mapa a Ilha Borbulhante fica no vulcão – informou Laira.<br />
– Tá brincando?! A ilha está em um mar de fogo? – perguntou Duda calculando o desafio que teriam pela frente.<br />
– Pouco provável, não faz o estilo deste mundo. Chocolate quente combinaria mais. – disse Laira começando a entender a lógica do lugar.<br />
– Mas como faremos para chegar ao vulcão? Eu diria que estamos a um zilhão quilômetros dele. <br />
– Não seja exagerada Duda, nem a Lua está tão longe. E tem mais, o mapa diz que só temos que encontrar um saco.<br />
– Um saco?<br />
– É, um saco – disse mostrando o desenho de um saco para Duda.<br />
– Mas onde acharemos um saco aqu... !!! hei!!!<br />
Foi tudo rápido demais. Um saco caiu sobre as irmãs e o dia desapareceu. Elas foram ensacadas por alguém enorme e podiam sentir que o gigante corria com elas nas costas. As meninas protestavam sem parar, mas o raptor não diminuía o passo. Meia hora depois a corrida cessou e o saco foi posto cuidadosamente em um piso cascudo.<br />
– Duda, está tudo bem com você? – perguntou Laira se ajeitando.<br />
– Estou dolorida, mas estou preocupada é com a mamãe e com a Daiane. Se chegarmos atrasadas para o jantar elas nos matam. <br />
– “Isso se não virarmos jantar de alguma fera antes” – pensou Laira arrependida de ter exposto sua irmãzinha a tantos riscos. <br />
Mas a sorte não havia abandonado as irmãs Borges. Pois apesar de não conseguirem rasgar o saco logo se viram livres graças a uma ajuda inesperada. <br />
– Duda, cuidado. Tem alguém ou alguma coisa roendo o saco – alertou Laira.<br />
As irmãs se encolheram abraçadinhas e viram o pano ser rasgado e deixar um pouco de luz entrar em seu interior. As meninas juntaram coragem e enfiando as mãos no buraco terminaram de rasgar o saco em dois. Elas brotaram do saco como duas borboletas de seus casulos. E ficaram satisfeitíssimas de ver que quem havia salvado elas era o Chouriço, que estava estirado no chão sem fôlego.<br />
– Coitado do nosso herói – disse Laira abraçando e beijando o porquinho. – Ele seguiu o seqüestrador até aqui e abriu o saco para nós – concluiu a menina.<br />
– Quando encontrarmos o tesouro vamos abarrotá-lo de moedas – prometeu Duda também acariciando o Chouriço. – Mas afinal, onde estamos? – perguntou olhando ao redor.<br />
As meninas estavam em uma caverna espaçosa iluminada por cristais brilhantes com colunas marrons que iam do teto ao chão.<br />
– Ouça Laira, essa caverna tem eco – disse Duda curtindo ouvir sua voz ecoando.<br />
– Silêncio Duda ou irá atrair a coisa que nos raptou – avisou Laira.<br />
Mas era tarde para qualquer cautela. Não um, mas dezenas de ursos saíram de trás das colunas cercando as meninas. Eles eram grandes, pretos e estavam comicamente vestidos com roupões de banho.<br />
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Cap. 12: “Todo Guloso”<br />
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Um dos ursos saiu do circulo e se aproximou das meninas cobrindo-as com sua sombra. A fera farejou o cabelo de Laira que estava de olhos fechados abraçada com Duda, torcendo ambas para que fosse um sonho ruim e que acordassem imediatamente. Mas se era um sonho então era dos pesados, pois o urso continuava do lado delas com suas presas a meio palmo de suas cabeças.<br />
– Desculpa Duda por ter te colocado em perigo. Eu fui uma péssima irmã. – disse Laira apertando seus braços em volta da irmã.<br />
– Não é culpa sua. Você foi uma boa irmã, mas vê se desaperta o abraço ou vai me matar antes do urso – pediu Duda sufocada.<br />
Ouvindo isso o urso fez cara de intrigado e arreganhou sua boca expondo duas fileiras de dentes enormes e pontiagudos. E caiu na gargalhada. Pra ser sincero, rolou no chão rindo e os demais ursos o imitaram o que irritou as irmãs.<br />
– Tudo bem nos devorarem, é o que se espera de ursos quando encontram menininhas. Mas não precisa tirar sarro! – reclamou Laira ofendida.<br />
– Devorá-las? Não! Nós somos ursos chocolatras. Meninas não fazem parte de nosso cardápio. – explicou o urso que havia se aproximado.<br />
– Vocês só comem chocolate? Não dá dor de barriga em vocês? – perguntou Duda sem estranhar o fato do urso também ter o dom da fala.<br />
– Não somos ursos comuns, querida. Portanto nossos estômagos também não – respondeu uma ursa usando um robe rosa.<br />
– E aonde desenterram chocolate suficiente para alimentar o grupo inteiro – perguntou Laira também curiosa.<br />
– Como adivinhou que desenterramos o chocolate? – perguntou a ursa. – Sério?! – disse Duda admirada.<br />
– Sério. Nós somos ursos mineradores e retiramos nosso sustento da terra, ou melhor, das rochas. Nós escavamos as montanhas do deserto de cristal e pegamos o chocolate que há embaixo delas. <br />
– É como se essas montanhas fossem casquinhas gigantes de sorvete com recheio de chocolate? – perguntou Duda.<br />
– É – confirmou o urso líder tirando um pedacinho crocante do chão. – Cascão, estão vendo? – disse esfarelando o pedacinho de chão. <br />
– Minha nossa! Quem criou esse mundo gostava muito de doces. – comentou Laira. – Mas mudando de assunto, por que nos trouxeram para esta caverna? Já que não foi para nos devorar.<br />
– Tem a ver exatamente com quem criou este mundo – disse a ursa.<br />
– Como assim? – perguntou Laira mais confusa do que nunca.<br />
– Vocês têm um mapa, não tem querida? – perguntou a ursa.<br />
– Talvez – respondeu Laira cautelosa.<br />
– Têm sim, todas as crianças que aportam em nossa praia tem um – afirmou a ursa. – Os mapas variam de tamanho e cor tanto quanto as crianças que os carregam, mas a história termina sempre do mesmo jeito. <br />
– Como? – perguntou Duda. – O tesouro é encontrado?<br />
– Infelizmente não. A história termina com as crianças falhando em sua busca e ficando presas na Ilha Borbulhante. É por isso que nós criaturas habitantes desse mundo decidimos cooperar para ajudar todo novo aventureiro a encontrar o Tesouro. Vocês por exemplo, vieram por mar, terra ou ar?<br />
– Pelo mar – respondeu Laira.<br />
– Então pegaram uma carona no submarino da Rosa. Pela terra seria com o trem centopéia e pelo ar com o dragão de origami. Mas sem carona não ficariam. Chegando ao Deserto de Flocos é nossa vez de dar uma “patinha”. Antigamente nos apresentávamos aos aventureiros e oferecíamos ajuda para cruzar as montanhas através de nossos túneis, mas isso foi antes de ficarmos pelados – disse a ursa envergonhada.<br />
– Bem, eu não ia tocar no assunto por discrição, mas por que mesmo vocês não têm pelo? – indagou Laira.<br />
– Como tinha dito, tem a ver com quem criou este mundo.<br />
– E quem foi?! – perguntou Duda que não agüentava mais o suspense.<br />
– Vocês crianças – declarou a ursa de robe espantando as meninas.<br />
– Nós crianças? – perguntaram juntas um tanto incrédulas.<br />
– Não é obvio? – disse o urso líder. – Toda criança que sai a caça de um tesouro acrescenta um elemento novo na realidade deste mundo. A primeira criança a contribuir para a formação deste mundo foi um menino muito criativo que chegou aqui sem mapa algum. Ele veio criando tudo pelo caminho. Nós o chamamos de o Todo Guloso – disse o urso com tristeza na voz.<br />
– Todo Guloso, é? Engraçado – disse Duda. – Será que não era um porquinho de porcelana? Conheço um que é “todo guloso”.<br />
– Nosso criador também. E nos parece que tinha uma predileção por doces – disse a ursa de robe.<br />
– E o que aconteceu com ele? – perguntou Duda.<br />
– Digamos que ele esqueceu o prazer de brincar e hoje só pensa em dinheiro. Uma pena, pois desde o dia em que ele nos deixou a deriva nenhuma outra criança que entrou em seu mundo conseguiu retornar para sua família. E a falta de alguém para guiar a brincadeira não tem sido nociva apenas para os aventureiros, mas principalmente para os seres que habitam este mundo como nós ursos mineradores. Sem alguém que zelasse pelo bem estar de nosso mundo ele adoeceu e irá morrer em breve. – lamentou o urso líder.<br />
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Cap. 13: “O Expresso Borbulhante”<br />
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Os homens de pão-de-ló estão mofando. Os rios de mel secaram e viraram pântanos pestilentos. E bombas de chocolate são detonadas em lugares públicos na capital do país – discursava o urso líder fazendo um panorama dos problemas que afligiam sua terra. – No nosso caso é a temperatura que aumentou obrigando-nos a depilação para suportar o calor. O problema é que somos tímidos e nos escondemos para que não nos vejam nus. E quando somos obrigados a falar com alguém, como agora, usamos roupões de banho. Por isso ensacamos vocês, para que não vissem nossas vergonhas. E não dá pra andar de roupão lá fora. Reparam no calor que faz? O sorvete está derretendo e quase só ficou o cascão das montanhas e uma massa compacta na praia. E as avalanches de cobertura têm sido tão constantes que já perdemos metade dos nossos soterrados em calda de morango. – disse a ursa chorando. <br />
– E como toque final, nossas reservas de chocolate suíço esgotaram e estamos sobrevivendo com chocolate de gordura vegetal. – disse o urso líder.<br />
Ao ouvir isto até o Chouriço se comoveu. <br />
– Puxa vida! – disse Duda. – Que história triste, mas adoraríamos ajudar se pudéssemos. Não é Laira?<br />
– Certamente. Só não sei como. <br />
– Simples. Recuperem o Tesouro e nossos mares voltaram a ser limpos e nosso sorvete fofo e abundante. – disse a ursa.<br />
– Então, por favor, nos levem até o vulcão para que continuemos a busca – pediu Laira apanhando o mapa para recomeçar a caçada.<br />
– Vocês já estão no vulcão – informou o urso líder. – Atrás daquela coluna há uma passagem que leva até ao coração da montanha e ao expresso borbulhante. E aconselho a correrem porque está quase na hora de expelir uma bolha, e a próxima só daqui uma hora. – disse o urso líder.<br />
As meninas correram pelo caminho indicado sem se informarem direito que história era aquela de “expresso borbulhante”. Quando Laira saiu no final de um longo corredor quase caiu de um penhasco.<br />
– Cuidado Duda! Os ursos esqueceram de nos avisar que teríamos que caminhar na beira de um abismo – disse Laira agarrando o braço da irmã.<br />
O caminho que levava ao coração do vulcão era externo e circundava a montanha. Não passava de uma trilha estreita com pedras soltas. As irmãs tiveram que atravessar a trilha encostadas no paredão e de olhos fechados para não ficarem zonzas e caírem. A queda seria demorada pela altura e a aterrissagem extremamente desagradável. E cientes disso as meninas mal respiraram durante os cinco minutos que estiveram ali. <br />
– Uau!!!Nós conseguimos!!! – comemorou Laira quando chegaram a entrada de uma outra caverna.<br />
Duda também estava radiante por ter escapado viva de mais aquele obstáculo e até teria pulado de alegria se pudesse, mas não podia.<br />
– Laira, socorro! Estou presa no chão – gritou a caçula esforçando-se para libertar o pé de uma gosma no solo.<br />
– Eu também estou presa Duda.<br />
– Isto é areia movediça? – perguntou desesperada.<br />
– Se fosse estaríamos afundando, mas estamos apenas grudadas como se tivéssemos pisando em...<br />
– Chiclete – chutou Duda.<br />
– E pelo cheiro e cor, diria que é de morango – completou Laira. – Deixe-me pensar em como sair daqui. Nós pod... Duda, você ouviu isso? Parece a voz da nossa irmã.<br />
“Meninas, eu já estou indo trabalhar. Divirtam-se e não brinquem na chuva. Tchau!”<br />
– É a Daiane mesmo – respondeu Duda. – Daiane! Socorro!<br />
Laira ajudou a irmã a gritar pela voz que vinha do céu como um eco muito distante, mas a voz não respondeu. E logo elas desistiram de chamar pela irmã quando suas vozes foram abafadas por outro som. <br />
– Helicópteros? – disse Laira surpresa.<br />
– Só se helicópteros tiverem patas – disse Duda apontando para uma nuvem negra de moscas gigantes no horizonte. <br />
– Onde está nossa guia quando precisamos dela?! – disse Laira brava.<br />
– Ao seu lado – respondeu Rosa sentada em uma pedra mais ao fundo da caverna. – E ai, precisam de ajuda?<br />
– Por favor – disseram juntas.<br />
– Se quiserem sair dai antes que aquelas moscas de padaria do tamanho de hipopótamos cheguem aqui, aconselho que tirem os tênis e pulem pra fora do chiclete – disse Rosa indo para a entrada da caverna.<br />
As irmãs Borges obedeceram prontamente e deixaram seus calçados para trás. <br />
– Agora vão crianças! Eu seguro as moscas pra vocês – disse Rosa tirando um mata-moscas gigante das costas pronta para o combate.<br />
– Tem certeza que pode vencer esses monstros? – perguntou Duda.<br />
– Eu como uma dúzia de monstros como esses no café-da-manh... digo, é modo de falar. Mas o que estão esperando? Vão! E não se preocupem comigo. Não me chamam de Rosas dos Ventos à toa. Ninguém me segura. Isto será fantástico!!! – gritou a moça atacando a primeira mosca que chegou à caverna.<br />
As irmãs obedeceram a guia e correram por um túnel cavado na rocha de cascão, mas estava escuro e ao virar em uma curva deram com o fim do túnel que terminava em um poço profundo e largo com água no fundo, e não puderam parar a tempo. Ambas despencaram mais o Chouriço no poço. Entretanto, elas não chegaram a atingir a água, que não era água coisíssima nenhuma, mas refrigerante que expeliu uma bolha tamanho família que as envolveu no ar e as levou para cima flutuando. <br />
– Vejo nuvens – Duda disse olhando para o alto enquanto a bolha subia ligeira. – Agora vejo uma ilha. – disse ainda olhando para cima.<br />
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Cap. 14: “A palavra mágica”<br />
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A bolha flutuou e flutuou carregada pelo vento, subindo em caracol até as nuvens. E lá no alto as irmãs Borges conheceram a maior atração daquele mundo: A Ilha Borbulhante. Uma pequena ilha tropical como qualquer outra, a não ser por estar suspensa a cinco mil metros do chão por uma infinidade de bolhas que se juntavam em sua base. <br />
– Duda me ajude a empurrar essa bolha para não ficarmos presas embaixo da ilha. – pediu Laira.<br />
– E se corrêssemos dentro dela como porquinhos-da-índia? – sugeriu Duda.<br />
– Pode ser – disse Laira experimentando com sucesso. – Genial Duda, assim podemos conduzir a bolha para onde quisermos.<br />
– E para onde nós queremos conduzi-la? <br />
– Deixe-me consultar o mapa um segundinho. Pronto, temos que descer nos portões de um templo onde o Tesouro está guardado.<br />
– Tem uma construção antiga no topo daquele morro parecida com o desenho do mapa, só que bem maior – disse Duda fazendo graça.<br />
– É o templo. Prepare-se para descer – disse Laira.<br />
– E poderia me dizer como é que faremos a bolha descer?<br />
– Boa pergunta – disse Laira se apoiando na película para pensar.<br />
Porém, a menina não teve que pensar nem um pouco, pois furou sem querer a bolha com as unhas da mão com que se apoiara. A película transparente estourou e as irmãs caíram sentadas no chão.<br />
– Tivemos sorte de cair em terra fofa – disse Laira batendo a poeira de sua roupa. – Estaríamos mortas se a bolha tivesse estourado no céu aberto.<br />
Porém, as meninas não caíram em terra fofa, mas em um monte macio de mapas do tesouro. Eles tinham diferenças entre si como as irmãs puderam conferir, mas todos terminavam na entrada daquele templo. <br />
– Beleza, finalmente alguém para conversar. – comentou uma voz atrás das meninas que levaram um susto ao ver que se tratava de uma esfinge. Um monstro com corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher. – E aí aventureiras, beleza? – cumprimentou a fera.<br />
– Be-beleza. Eu acho – gaguejou Laira enquanto Duda se escondia atrás dela. – Desculpa, mas a senhora é uma esfinge devoradora de homens? Ou prefere brigadeiros? – perguntou torcendo para que não houvesse monstros carnívoros naquele mundo.<br />
– Srta. Esfinge, por favor, e brigadeiros não, mas aceito um pé-de-moleque se tiver um.<br />
– Não temos pés-de-moleque. – disse Laira. <br />
– Claro que não – disse a esfinge prontamente, mas tem dois pés de menina cada uma, o que é melhor ainda. Ou podem me dar esse porco que a menorzinha leva no colo. A carne deve ser meio dura, mas tenho dentes fortes – disse sorrindo para as irmãs expondo suas presas esverdeadas.<br />
– Espere, se me lembro bem, a senhorita tem que nos propor uma charada. E se acertarmos tem que nos premiar, agora se errarmos viramos ração de esfinge, mas apenas se errarmos. – disse Laira.<br />
– Certo, vou propor uma charada e se errarem já sabem, mas se acertarem vou abrir o templo para que possam pegar o tesouro. E querem saber de uma coisa? Tomara que acertem para que eu possa ir embora, pois já enjoei de ficar plantada na porta desse templo. Mas chega de rodeios, é hora da charada. Prestem atenção que essa é das boas, em mil anos ninguém desvendou: “Para a porta abrir, uma palavra mágica vão ter que descobrir. É uma palavra tão poderosa que com ela podem mover montanhas. Se fossem educadas saberiam”. – disse a esfinge.<br />
– Só? – Não vai nos dar mais pistas? – reclamou Duda.<br />
– Me dá um pedaço do porco que te dou mais uma pista – disse a esfinge.<br />
A menina ignorou a proposta e se afastando um pouco com a irmã dividiram opiniões. Laira queria arriscar “Shasan” e Duda “Abracadabra”, mas por fim entraram em acordo.<br />
– Srta. Esfinge, temos um palpite – disse Laira.<br />
– Não querem pensar um pouco mais – sugeriu a esfinge. – Vocês têm uma chance, não vão desperdiçá-la.<br />
– Pensamos o bastante e a conclusão foi “por favor”. Embora seja duas palavras e não uma, mas como toda charada inclui uma pegadinha: Por favor, Srta. Esfinge, poderia abrir a porta para nós? – pediu Laira sorrindo.<br />
– Demorou mas até que enfim alguém matou essa charada. – festejou a esfinge que bateu as asas e voou para longe sem sequer se despedir das meninas. <br />
A porta do templo abriu sozinha no momento em que a esfinge partiu. As meninas deram uma espiada antes de entrar e viram um salão de pedra com uma arca no centro. Elas iam começar a festejar quando sentiram mãos ossudas segurando seus braços.<br />
– Fico feliz em ver que sobreviveram ao bicho geográfico. – disse o Capitão Gagá acompanhado de sua trupe de múmias.<br />
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Cap. 15: “O verdadeiro tesouro”<br />
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As irmãs Borges bem que poderiam ignorar os recém chegados, pegar o tesouro e ir embora. O que o Capitão Gagá poderia fazer para impedi-las? Persegui-las com seu andador? No entanto, o mau velhinho tinha um trunfo nas mãos desta vez. Ele trazia uma refém. <br />
– Rosa?! Eu não acredito que você foi capturada por piratas desdentados! – disse Laira ao ver sua amiga acorrentada junto ao capitão.<br />
– Oi pra vocês também meninas. Como têm passado? Aqui estão os seus calçados, tomei a liberdade de recuperá-los depois que esmaguei aquelas moscas, não todas que a maioria fugiu . Moscas covardes! – disse Rosa à vontade como se estivesse se divertindo com a situação.<br />
– Estamos inteiras, por enquanto. E você?<br />
– Eu cortei as unhas faz meia hora, mas fora as unhas também estou inteira. E antes que me esqueça, meus parabéns por terem chegado tão longe. A maioria desiste ou se estrepa antes mesmo de pegar o expresso borbulhante. <br />
– Chega de conversa! Coff! Eu quero meu tesouro! – gritou Gagá.<br />
– O seu tesouro esta logo ali naquela arca. Pode ficar com ele, mas solte nossa amiga e não nos incomode mais. – disse Laira com o consentimento da irmã que também valorizava mais uma amizade do que qualquer tesouro material.<br />
– Não irá me enganar desta vez, donzela indefesa – disse o capitão. – Devo ter instalado uma armadilha na arca e não serei eu a por a mão na cumbuca. Quero que abram a arca e então se permanecerem vivas decidirei o que fazer com vocês. Caso contrário eu forçarei a amiga de vocês a andar na corda bamba. Viram! Nós nos lembramos de como se executa os prisioneiros. – as três meninas abafaram um risinho e contra-mestre do Gagá o corrigiu baixinho em seu ouvido. – Ah? – disse Gagá não entendo bem o que o contra-mestre havia dito. – Entendi, entendi. Esqueçam a corda bamba. Ela andará em uma prancha de surfe, assim que o carpinteiro fizer uma. - sentenciou Gagá se achando muito esperto e cruel. <br />
– Repito Rosa, como foi que se deixou ser capturado por essas figuras? Eles são incapazes de pegar até resfriado. – disse Laira impressionada com a patetice deles, nisso um pirata espirrou para provar que ao menos resfriados eram capazes de pegar.<br />
– Os ursos chocólatras contaram para vocês sobre a origem deste mundo? – perguntou Rosa e as meninas balançaram a cabeça em sinal de afirmação. – Pois é, eu também vim pra cá como uma aventureira, mas não para caçar esse tesouro e sim o meu irmãozinho caçula que se perdeu aqui. Com o passar dos anos conclui que só o teria de volta e só voltaríamos para casa quando alguém terminasse esta história de caça ao tesouro. Por isso tenho me dedicado a ajudar os aventureiros em sua jornada. E nas raras vezes em que uma criança chega ao templo eu me deixo capturar pelos piratas. Não dá para explicar agora, seria contra as regras. Basta que saibam que a presença do vilão na cena final é vital para um grande final.<br />
– Sei não, seus planos terminam sempre com a gente correndo perigo. – disse Laira.<br />
– O Chouriço também não gosta de correr perigo. – disse Duda.<br />
– A escolha é de vocês meninas. Terminem esta história para que possamos começar uma nova, ou se juntem a nós e compartilhem de nossa maldição, tendo que viver a mesma velha e imutável história dia após dia. Pelo menos não terão que sofrer tanto, não creio que este mundo dure por muito mais tempo. No ritmo em que ele se deteriora logo, logo a fantasia terá se desmanchado. E será nosso fim. – disse Rosa séria.<br />
– Quanta bobagem! – disse o Capitão empurrando as irmãs para o centro do salão. – Quem se importa com esse mundo?! Quando recuperar meu tesouro eu poderei comprar quantos mundo me der vontade. Inclusive farei deste um estacionamento. Coff! Coff! <br />
– Capitão Gagá. O Chouriço quer saber como foi que nos alcançaram tão rápido? – perguntou Duda ignorando a cólera do pirata.<br />
– Nada demais, donzela indefesa. Aparecimento súbito em momentos chaves da narrativa é um dom natural de qualquer vilão. – explicou Gagá. – agora abram à arca – ordenou à Laira cutucando-a com sua bengala.<br />
Na tampa da arca havia um molho de chaves com aviso preso nele. Laira pegou o molho e leu a mensagem em voz alta:<br />
“Vocês carregam a chave que concederá o verdadeiro tesouro. Escolham a chave errada e sairá um demônio abissal da arca e comerá seus olhos. Tenha um bom dia”. <br />
– Acho melhor eu esperar na porta vocês recolherem o tesouro. Vocês têm um minuto, um minuto! Coff! – disse Gagá se afastando temeroso.<br />
As meninas examinaram as chaves e para azar delas todas eram iguais.<br />
– Chegamos a um beco sem saída, Duda. Qualquer chave que experimentarmos irá provavelmente libertar o demônio “olhivoro”. <br />
– Talvez a chave correta não esteja no molho – observou Duda.<br />
– Mas onde está então? Esse salão é liso como um espelho, não há onde esconder uma chave. E o minuto já se passou. – disse Laira aflita.<br />
– Mas o aviso diz que nós estamos carregando a chave – lembrou Duda. – Não seria uma pista?<br />
– Sim! Mas é claro! – festejou Laira procurando algo no bolso de sua calça. – Aqui está, a chave da arca da vovó. – disse ostentando uma chave semelhante às chaves do molho. – Feche bem os olhos Duda, pois vou abrir e não custa nada se prevenir. – disse girando a chave na fechadura.<br />
A tampa fez trinc! e abriu liberando uma forte luz colorida que foi clareando aos poucos até ficar pálida como um arco-íris prestes a desaparecer. As irmãs abriam os olhos devagarzinho e espiaram dentro da arca com o coração a mil. <br />
– Isso só pode ser uma piada. – disse Laira decepcionada. – Não pode ser possível que enfrentamos tantos perigos por... por...<br />
– Uma bola! Uma bola colorida – disse Duda animada. – Você não gostou Laira?<br />
– Não é tão encravada de jóias, nem tão dourada quanto eu imaginava – comentou desanimada. – Mas confesso que tão brilhante quanto. Vai ver ela é mágica.<br />
– Mágica? – perguntou Duda.<br />
– É, mágica. De repente tudo faz sentido, Duda. – disse Laira fora de si. – Se eu estiver certa nós descobrimos como salvar este mundo!<br />
– Pena que o Capitão Gagá não ligue para o mundo e não me pareça o tipo de velhinho que gosta de bolas coloridas. – disse Duda preocupada.<br />
– Isso é o que veremos Duda. – disse Laira pegando a bola. <br />
– Hei!? encontraram meu tesouro? Coff! Coff – gritou o capitão. – O tempo acabou. Terei que dar bengaladas na amiga de vocês. – disse o pirata levantando com muito custo sua bengala sobre a cabeça de Rosaa que sorria vendo a bola na mão de Laira.<br />
– Encontramos sim! – gritou a menina jogando a bola bem de leve para o Capitão Gagá.<br />
O pirata acompanhou a trajetória da bola no ar e sua feição foi se modificando. Ele largou a bengala e o andador e matou a bola no peito, fez duas embaixadinhas e a equilibrou na testa, depois passou para o contra-mestre que a fez escorregar de um ombro ao outro passando pela nuca. E assim a bola passeou entre os piratas como se fosse um time profissional de futebol. Quando a bola retornou ao capitão ele não era mais um velho, mas um garotinho de oito anos de cara sapeca fantasiado de pirata. E a mesma metamorfose ocorreu com toda a tripulação do Matusalém. <br />
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Cap. 16: “A irmã do Todo Guloso”<br />
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– Rosa! Minha irmã! – disse o garotinho para a moça que o abraçava carinhosamente. – Eu havia esquecido de você, eu havia me esquecido de mim.<br />
– Mas eu nunca me esqueci de você, Gabriel! – disse Rosa beijando-o e chorando. – Eu sabia que um dia venceríamos a maldição.<br />
As irmãs Borges e o chouriço aguardaram pacientemente os irmãos matarem a saudade um pelo outro e então chegou a vez delas de serem abraçadas.<br />
– Somos eternamente gratos pelo que fizeram, meninas. – disse Rosa.<br />
– Me perdoem se não fui legal com vocês antes – desculpou-se Gabriel.<br />
– Relaxa pessoal. Foi um prazer ajudar, mas também gostaríamos de rever nossa irmã. Não poderia nos levar para casa em seu submarino Rosa? – perguntou Laira.<br />
– A nossa irmã e nossa mãe devem estar preocupadíssimas conosco. – completou Duda. – E o Chouriço está cansado de aventuras por hoje. <br />
– Eu poderia dar uma carona para vocês – disse Rosa, mas conheço um atalho. Vocês trouxeram um guarda-chuva?<br />
– Serve uma sombrinha? - disse Duda tirando uma de sua mochila suja de farelo de biscoito.<br />
– Vai ter que servir. – disse Rosa. Abram a sombrinha na luz que está saindo da arca e segurem firme no cabo dela e logo estarão em casa.<br />
– E vocês? O que farão? – perguntou Laira.<br />
– Nós temos muito o quê arrumar antes de partir. Temos que limpar o Mar de Esgoto, regular a temperatura e recolher o lixo em geral. E preparar o lugar para os próximos aventureiros. E lembrem-se, serão sempre bem-vindas aqui na... como é mesmo Gabriel que você batizou esse mundo?<br />
– Docelândia – respondeu o garotinho segurando sua bola.<br />
– Não me surpreenda que ninguém use esse nome, Gabriel. Teremos que pensar em um melhor. Mas, agradeço novamente por terem recuperado para meu irmão a infância que ele havia esquecido, e também pelas outras crianças que tiveram o mesmo destino. Providenciarei para que as “Irmãs Borges” nunca sejam esquecidas na Doce... aqui. – concluiu Rosa.<br />
As meninas se despediram e se preparavam para abrir sua sombrinha quando Duda teve uma idéia. <br />
– Laira me passa sua bolsa.<br />
– Pra quê? <br />
– Vamos deixar um tesouro para os próximos aventureiros.<br />
– Mas nós só temos quinquilharias, Duda.<br />
– A quinquilharia de uma criança é o tesouro de outra – disse Rosa que ainda estava por perto. – Nós ficaríamos honrados em receber em nosso templo sua generosa oferta. <br />
– Ok. – disse Laira depositando um monte de coisinhas de sua mochila na bolsa. – Torço para que esses objetos façam outros tão felizes quanto fizeram a mim e a minha irmã.<br />
– Eles farão sim – disse Gabriel. – Mas o verdadeiro tesouro vocês levam consigo. <br />
Então a sombrinha foi aberta e as meninas foram sugadas por um túnel luminoso e multicolorido. Elas subiram por um arco com quilômetros de altura e depois desceram vertiginosamente. <br />
– Laira! Nós estamos escorregando por um arco-íris!? <br />
– Simmmm!!! – gritava a mais velha.<br />
Graças à sombrinha a aterrissagem não foi tão brusca e a grama enlameada do quintal também ajudou a amaciar a queda. Mas em algum momento da descida o mapa para Docelândia caiu do bolso de Laira e foi levado pelo vento para longe.<br />
– Meninas, o que estão fazendo na lama?!?! – gritou a mãe delas que vinha chamar as meninas para se aprontarem para o jantar. – Já para banheiro! Tomem um banho para jantarem. Andando, andando que vai começar a chover de novo.<br />
As irmãs Borges estavam tão contentes de terem retornado ao quintal de casa que não se importaram com a bronca. Elas se limitaram em abraçar a mãe extinguindo-lhe a braveza e sujando-a com lama.<br />
– Eu também amo vocês queridas – disse a mulher correspondendo o abraço das filhas. – Mas até parece que estiveram viajando – comentou.<br />
As meninas trocaram um olhar de cumplicidade e entraram correndo em casa dando risadinhas.<br />
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Cap. 17: “Não há lugar como a nosso lar”<br />
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“Essas meninas andaram aprontando, mas não há muita coisa que pudessem ter feito no quintal durante uma tarde nublada”, pensou a mulher desviando-se das primeiras gotas de chuva. Ela voltou para a cozinha e terminou de arrumar a mesa. Depois da refeição ela daria um jeito de fazê-las confessarem suas artes. Por hora, estava mais preocupada em vê-las limpas e alimentadas. Pois seu instinto de mãe lhe dizia que as filhas tinham passado por maus bocados nas últimas horas. O que ela sabia ser impossível. Mas quando instinto fala não custa escutar, pensou. <br />
Laira e Duda tomaram um banho longo e reconfortante e foram jantar. E como havia sido contado no início da história a irmã mais velha trabalhava à noite em uma videolocadora e voltava tarde para casa, por isso ela não estava presente na hora do jantar. Enquanto comiam a mãe pressionou um pouco as filhas a contarem como foi que conseguiram lambuzar suas roupas com sorvete sem saírem do quintal, mas as peraltinhas se recusavam a contar a caçada ao tesouro antes que a Day voltasse do trabalho. <br />
Mais tarde, quando o padrasto chegou do trabalho ele também tentou, a pedido da esposa, convencer as afilhadas a revelarem o segredo. Ele experimentou até suborná-las com promessas de doces e um passeio em um parque de diversões, mas por algum motivo que estranhou muito as meninas não queriam ver doces tão cedo e não se interessaram pelo parque de diversões. O padrasto se convenceu de que eram apenas “fases” e foi dormir. Na cama a mãe das meninas refletiu que a Daiane, na idade das irmãs menores, também aparecia às vezes suja de doce sem sair do quintal e nunca conseguia se explicar direito. E o mistério continuaria insolúvel para os adultos. Menos para Daiane que teria uma surpresa.<br />
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Quando a moça chegou do trabalho foi direto dar boa-noite as irmãs que encontrou despertas. Elas esperavam a Daiane para contarem à aventura que haviam vivido no mundo dos doces. Aliás, vale a pena comentar que elas comeram suas verduras no jantar sem reclamar e rejeitaram a sobremesa fazendo caretas.<br />
Após o jantar não foram assistir novela como de costume. Elas preferiram ir para o quarto que dividiam e ficaram acordadas em suas camas relembrando detalhes da viagem. E não teriam dormido nem se tivessem bebido um litro de suco de maracujá cada uma, tamanha a agitação causada pelas lembranças.<br />
Tarde da noite a Day chegou fazendo o mínimo de barulho para não acordar as irmãzinhas, mas ao dar um pulinho no quarto delas para vê-las dormindo não as encontrou roncando como previu. <br />
– O que fazem acordadas até agora? – perguntou Day. – Eu imaginava que iriam dormir cedo exaustas de tanto brincar. – disse sentando-se na cama da Duda que pulou em seu colo.<br />
– Nós temos uma história para te contar – disse Duda abraçando-a.<br />
– Uma história para mim? Mas não era eu quem deveria contar uma história para vocês? <br />
– Tanto faz. O importante é que uma história seja contada – disse Laira. – E nós temos uma muito boa.<br />
– Então contem porque estou ansiosa para ouvi-la – falou Day ajeitando o travesseiro da Duda na cabeceira e encostando-se nele.<br />
– Mas você não está cansada? – perguntou Laira.<br />
– Estou sim, mas garanto que minha curiosidade é maior.<br />
As meninas ficaram felizes em ouvir isso e deram início à história.<br />
– Hoje à tarde encontramos no meio das bugigangas da vovó um mapa do tesouro...<br />
– Um mapa!? – exclamou quase rindo.<br />
– Sim, um mapa antigo que mostrava o caminho para um tesouro esquecido por um pirata muito engraçado chamado Capitão Gagá – explicou Laira. <br />
– Capitão Gagá? Que nome para um pirata! – comentou achando graça da seriedade com que sua irmã contava a história. – E onde está esse tal “Mapa do Tesouro”? Eu gostaria de vê-lo – pediu a moça.<br />
– Houve um incidente na hora de voltarmos para casa e perdemos o Mapa. O vento tomou o mapa da minha mão e o levou embora. – e ao lembrar-se disso Laira mudou a expressão se entristecendo.<br />
– O que foi Laira? – perguntou a moça quase se deixando trair, já que ia dizendo que não havia problema terem perdido o mapa, pois ela podia fazer outro facilmente, mas se conteve a tempo. – Por acaso, vocês perderam o mapa antes de encontrarem o tesouro?<br />
– Não é isso – respondeu Duda pela irmã. – É que a Laira acha que você não vai acreditar na gente sem prova. Até temos o Chouriço como testemunha, mas ele fica tímido na frente de estranhos e não se mexe – disse pegando o cofrinho remendado que repousava sobre o criado mudo.<br />
Daiane não entendeu muito bem a referência àquele porquinho acidentado que nunca havia visto antes.<br />
– Eu acredito sim! porque sei que minhas irmãs não são mentirosas. O que importa na realidade é que vocês acreditam. - Laira e Duda sorriram satisfeitas pelo apoio moral da irmã. – Mas e aí? Vocês encontram um mapa e o que mais? – perguntou Daiane.<br />
As irmãs Borges retomaram a narrativa juntas e às vezes se atrapalhavam com algum detalhe como a quantidade de piratas ou o tamanho das moscas de padaria. E a versão de uma diferenciava muito da outra, o que no final das contas só enriqueceu a experiência, pois em vez de uma única história haviam retornado com duas. <br />
A irmã mais velha ouviu tudo atentamente e prometeu a si mesma que na manhã seguinte poria aquela aventura no papel para que jamais fosse esquecida e outras crianças um dia pudessem desfrutá-la também. Esse foi o último pensamento que a moça teve antes de adormecer na cama de sua irmã caçula. <br />
As meninas perceberam que a Daiane dormira, e após alguns bocejos resolveram também dormir; mas primeiro deram um beijo cada uma na testa da irmã que disse “Chega de sorvete, eu não agüento mais sorvete” provocando risos nas irmãs que abafaram as bocas com as mãos. <br />
– Boa-noite Duda! – disse Laira apagando o abajur do lado da sua cama mergulhando o quarto na penumbra.<br />
– Boa-noite Laira! – disse a caçula apagando o seu abajur deixando o quarto completamente escuro a não ser pelos raios que iluminavam a janela. – E boa noite pra você também Chouriço! – se lembrou Duda.<br />
– Ronc, ronc! – ouviram as meninas e então adormeceram.<br />
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Prólogo <br />
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Em outra casa, em outro quarto, outras crianças ainda estavam acordadas assustadas com os trovões. <br />
Braaammm!!!<br />
– Nossa!!! Esse caiu muito perto – disse um menino escondido debaixo de seu cobertor. Ele falava com o irmão mais velho na parte de cima do beliche que dividiam. – Júlio, posso deitar com você? – perguntou levantando-se e subindo pela escadinha do beliche. <br />
– Melhor não Daniel, o beliche vai quebrar – disse ao caçula sem tirar sua cabeça debaixo do travesseiro.<br />
– Não vai quebrar não – insistiu o garotinho.<br />
– Vai sim. Agora volta pra sua cama antes que o bicho pap...!!!<br />
Braaammm!!! Trekkk!!!<br />
Os irmãos se encolheram apavorados com o estrondo de trovão seguido do barulho da janela aberta pelo vento. O Daniel só não caiu do beliche com o susto porque seu irmão segurou o seu braço. Eles ficaram olhando assustados a janela se debater e a chuva inundar o chão do quarto. <br />
– Temos que fechar a janelas antes que nossos pais acordem e nos deem uma bronca – disse Júlio pulando do beliche.<br />
O seu irmãozinho o seguiu e ambos molharam os pés descalços na poça formada pela chuva. Júlio segurou as duas abas da janela e as juntou para passar o trinco. Mas nesse meio tempo uma coisa parecida com um morcego entrou no quarto debatendo-se por cima das cabeças dos irmãos.<br />
– Júlio, o que isso?! – perguntou o caçula choroso. <br />
– É um morcego-vampiro – disse Julio maldosamente, mas vendo que seu irmão iria chorar desmentiu. – Deixa de ser molenga Daniel, isso daí não é um morcego. É só um jornal velho pego na tempestade, só não sei como não se desmanchou na chuva. – disse o garoto recolhendo a coisa que caíra na cabeceira de sua cama.<br />
Os garotos acenderam a luz do quarto e se sentaram na cama do menorzinho para examinar o achado. Por incrível que pareça a chuva não havia estragado a folha, não mais do que sempre esteve desde o instante em que derramaram café de propósito sobre ela.<br />
– Parece um mapa – disse Daniel.<br />
– É um mapa – confirmou Júlio. – Um mapa do tesouro – acrescentou.<br />
– Um mapa do tesouro!?! – repetiu Daniel com olhos brilhando.<br />
– Não se empolgue tanto Daniel. Isto deve ser apenas um mapa de faz-de-conta que alguém perdeu e o vento trouxe – explicou Júlio.<br />
– Eu não tenho nada contra ele ser de faz-de-conta – disse o caçula.<br />
– Nesse caso, saiba que o mapa diz que quem quiser encontrar o “Tesouro das Estrelas” deve começar indo à Lua. E mesmo que tivéssemos um foguete, como pode ver – disse apontando para a janela – esta noite não há Lua apenas nuvens carregadas de chuva. <br />
Daniel pegou o mapa e caminhou desconsolado até a janela e ficou observado o tempo fechado lá fora e desejou que a chuva parasse e a Lua aparecesse. E o seu pedido foi atendido, a chuva interrompeu sua queda subitamente e as nuvens se afastaram exibindo no céu a maior e mais prateada Lua Cheia que qualquer criança já vira. <br />
– Júlio, acho que agora só temos que arranjar um foguete – disse o pequenino para o irmão que abriu a janela sem fala.<br />
E do alto desceu enfrente a janela uma escadinha de corda com uma moça pendurada nela. A escadinha descia de um balão no formato de um disco voador gigantesco e brilhante. A moça estava sorridente e assim que conseguiu se equilibrar no batente da janela disse:<br />
– Olá rapazes! Eu sou Rosa dos Ventos e espero que estejam preparados para uma lonnnga noite de aventuras. Confie em mim e não vão se arrepender – e deu uma piscadinha sapeca. <br />
E as crianças não se arrependeram.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-54027620719561248632010-01-14T08:08:00.001-04:002010-01-14T08:11:16.203-04:00FANFIC-SUPERNATURAL : "O DEVORADOR DE ALMAS"PREFÁCIO<br />
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Este conto é uma fanfic, uma história original que se passa em um mundo pré-existente e com personagens emprestadas. Neste caso me aproveito do mundo de Supernatural (ou Sobrenatural se preferir). E esta é minha segunda tentativa, pois havia escrito uma outra com tema natalino, mas desisti quando a introdução chegou à página 30. Esta segunda versão é mais simples e direta, mesmo assim bem mais complexa do que os roteiros dos episódios da TV. <br />
Para ser o mais fiel possível a série fiz uma maratona e vi a primeira e a segunda temporada (nunca havia assistido dois episódios seguidos). Infelizmente reparei que alguns pontos da minha história repetem fatos da série e outros a contradizem. Por isso, peço que encare esta aventura como um episódio a parte, fora do conjunto, em um universo paralelo, por vezes muito parecido com o da TV mas essencialmente diferente; mesmo porque minha idéia original não era escrever uma fanfic, mas sim um conto de terror. <br />
Por fim, sugiro que para sua maior satisfação leia este conto de uma só vez ou perderá muito do efeito dramático e estragará o clima se a leitura for suspensa, se possível leia à noite. E ajudaria se encarasse esta aventura como um episódio especial, um episódio duplo ou uma versão para o cinema, em que os irmãos Winchester entram em uma história de terror legitima, daquelas de 18 anos taxa preta e um tanto trash. <br />
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Introdução<br />
Nova Orleans - Estado de Lousiana; <br />
Julgamento em andamento: O povo contra Eric Kripke ;<br />
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Uma promotora exibe indignada para o júri o punhal usado pelo réu para realizar um sacrifício humano em um ritual de magia negra.<br />
– Senhores jurados, esta é a arma com que o réu degolou friamente a pequena e indefesa Sarah de apenas sete anos. A mesma menina que ele raptou em um parquinho e manteve cativa por um mês a espera da data adequada para oferecê-la a uma divindade demoníaca da cultura hudu. Lembro também que o réu é suspeito de ter sacrificado doze crianças no total, desaparecidas na região nos últimos seis anos... <br />
– Protesto meritíssimo! – interrompeu o advogado de defesa. – A colega promotora está induzindo o júri. Meu cliente não está sendo julgado pelo desaparecimento dessas crianças e sequer pelo assassinato de Sarah, mas por envolvimento com o desaparecimento dela. – alegou apesar de não ter dúvidas que seu cliente era culpado por estas e muitas outras mortes.<br />
– Protesto aceito – decidiu o juiz.<br />
– Mas meritissim...<br />
– Eu sei Dra. Stuart, isto também não me agrada – disse o juiz, mas ele tem razão. A promotoria só dispõe de um punhal manchado com o sangue da vitima, mas de procedência questionável e a única testemunha ocular carece de credibilidade.<br />
A promotora não teve alternativa a não ser mudar sua estratégia, mas sem evidências concretas era quase impossível sustentar qualquer argumento.<br />
Enquanto isso no banco do réu um homem magro queimado de sol, cabelo ralo e nariz adunco lia em silêncio sua bíblia de bolso como se ignorasse que estava sendo julgado por rapto e homicídio. <br />
Tudo parecia a favor do advogado de defesa, um sujeitinho pálido de olhar vazio, que alegava insanidade para seu cliente que não podia colaborar com a investigação por ter sofrido uma amnésia pós-trauma. Do lado oposto a promotora se embaraçava nos furos do processo e no meio de seu discurso teve um branco constrangedor. Só que não foi um branco.<br />
– Algum problema Sra. Stuart? – indagou o juiz. –Você ficou pálida de repente. Está se sentido mal?<br />
– Não Meritíssimo, estou bem. – respondeu a promotora abalada.<br />
– Tem certeza? A senhora parece que vai desmaiar. – insistiu o juiz.<br />
– Certeza. Foi só uma vertigem – mentiu a promotora recobrando-se. <br />
Ela prosseguiu com a acusação, mas desconcentrada, confundindo detalhes do processo. Todos os presentes no tribunal pareciam perceber que algo estava perturbando-a, com exceção do acusado que permanecia de cabeça baixa murmurando sua oração.<br />
O que ninguém percebeu, além da promotora, foi a presença de um estranho no tribunal. Ele estava nu e sua pele era negra e brilhante como piche e tremia como uma miragem, seus olhos eram brancos e não havia cabelo ou pelo em seu corpo. A figura surgia em um canto como um vulto e desaparecia assim que a promotora piscava, surgindo em outro ponto do tribunal. A coisa encarava a promotora apontando um dedo acusador com uma unha pontiaguda na direção dela.<br />
– Sra. Stuart? Ainda está conosco? – perguntou o juiz para a promotora que abandonara seu discurso para encarar um canto da sala.<br />
– Sim? Desculpem-me. Onde eu estava mesmo? – disse despertando de seu transe. <br />
– Chega Sra. Stuart, você não está em condições de prosseguir. Faremos um intervalo de 15 minutos para que possa medir a pressão e respirar um pouco. – informou o juiz à corte.<br />
A promotora não protestou entretida em procurar pelo recinto a figura que ninguém mais via. Do seu banco o réu sorria para sua acusadora.<br />
– O que aconteceu com a senhora? Estava indo tão bem? Digo para um caso espinhoso como esse. Foi algo que você comeu? – perguntou Ana, uma colega da promotora e que vinha auxiliando no caso.<br />
– Não é nada. Tenho apenas que lavar o rosto – disse indo para o banheiro feminino.<br />
– Quer que eu te acompanhe? – ofereceu Ana.<br />
– Não, estou bem. Você já ajudou muito, sem você não conseguiria ter montado a acusação no prazo. E como o advogado dele só sabe repetir feito papagaio “insanidade, insanidade” o desgraçado deve pegar perpétua, se Deus quiser. O estranho é aquele advogado ter cara de peixe-morto e o juiz pegar justo no meu pé – concluiu forçando um sorriso enquanto avançava pelo corredor até o toalete das damas. <br />
O banheiro estava vazio e a promotora começou a se arrepender de não ter aceito que sua colega a acompanha-se. Ela se sentia insegura e ao mesmo tempo ridícula por temer uma alucinação. “Mas afinal de contas, que diabos era aquilo?!” , pensou enquanto lavava o rosto na pia. Neste instante sentiu uma língua fria e pegajosa correr por sua espinha. A mulher respirou fundo e levantou a cabeça devagar certa de que veria no espelho o reflexo daquela coisa atrás dela, aspirando seu hálito quente de enxofre em sua nuca. Porém, para surpresa e sorte dela não encontrou nenhuma figura assustadora no espelho.<br />
A promotora Stuart riu de seu reflexo apavorado e se chamou de boba. Mas ao dar as costas para o espelho trombou com o vulto que estava realmente em pé atrás dela. A mulher abriu a boca para gritar, mas a criatura foi mais rápida e enfiou sua mão enorme dentro da boca dela. A promotora se ajoelhou no chão forçada pelo seu carrasco que enfiava o braço musculoso até o cotovelo em sua garganta e então o retirou com um puxão. Foi tudo muito rápido e doloroso.<br />
– Sra. Stuart, eu... !!!<br />
Ana entrou no banheiro com uma pasta de documentos e viu sua colega curvada no piso vomitando no azulejo um jato de sangue. Em questão de segundos ela viu cada gota de sangue da promotora ser expelido pela boca a golfadas. No meio da poça jazia um cadáver branco como giz tingindo a roupa de vermelho vivo.<br />
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Cap. 1: “O caçador enjaulado”<br />
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Três dias depois às 10 h.<br />
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Um impala preto 67 estaciona próximo à Prisão de Segurança Máxima de Nova Orleans e dois homens saem dele vestindo ternos e carregando valizes. O mais alto parecia incomodado com a roupa como se ela coçasse. O outro parecia à vontade como se tivesse nascido para usar terno e carregar valizes cheias de papéis importantes, ao contrário daquelas recheadas com jornal velho.<br />
No interior do presídio havia um gramado com uma trilha pavimentada que levava à entrada dos prédios que formavam os pavilhões. Um guarda conferiu um documento apresentado pelo visitante mais jovem, tirado em um xérox, e indicou aonde deveriam ir. Não havia nenhum prisioneiro a vista, apenas sentinelas armados observando-os das guaritas seguirem seu caminho.<br />
O mais novo dos dois rapazes reparou que o outro ignorava o aviso de “não pise na grama” e parou repreendendo-o com o olhar. <br />
– Qual é, Sam?! Se não queriam que pisassem na grama não deveriam tê-la posto no chão. Uma baita contradição, não acha? <br />
– Você não assistiu “A Fortaleza”, Dean? Esqueceu o que acontecia quando alguém pisava onde não devia?<br />
– Relaxa Sam, nossos estômagos não vão explodir. Pelos menos não lembro de ter ingerido um explosivo no café-da-manhã .<br />
– Não é isto, Dean. O que eu quis dizer é que estamos em uma prisão e devemos seguir as regras senão quisermos permanecer por aqui.<br />
– Entendi, Sammy. Agora chega de chilique, que você é quem está chamando a atenção. Vamos – disse Dean entrando no prédio em que eram feitas as visitas aos prisioneiros.<br />
Os irmãos foram recepcionados por mais um guarda que pegou suas assinaturas no livro de visitas: William Shateman e Leornd Nimoy ; depois os conduziu a uma cabine onde conversariam com um conhecido do pai deles. A cabine era um cubículo onde mal coube os dois Winchester sentados lado a lado, com uma divisória de vidro que separava os visitantes dos prisioneiros. A comunicação era feita através de telefones sem contato algum direto entre os interlocutores. <br />
Sentado do outro lado da divisória havia um homem com cerca de cinqüenta anos usando um uniforme laranja fosforescente. O sujeito não pareceu feliz com a presença dos Winchester, apesar da ansiedade com que pegou o telefone e começou a falar sem parar com sua voz rouca.<br />
– Por que diabos demoraram tanto!?! Se fosse caso de cadeira elétrica eu já teria virado churrasquinho! – reclamava cuspindo no vidro.<br />
– Calma Singer , está embaçando o vidro. Quase não posso ver sua cara feia – provocou Dean.<br />
– Deixa comigo, Dean – pediu Sam. – Desculpa a demora Sr. Singer, nós tivemos um imprevisto no caminho para cá...<br />
– Dois para ser mais exato – cortou Dean.<br />
– É, derrubamos uma ponte mal-assombrada e infelizmente ficamos do lado errado. Foi necessário uma volta de duzentos quilômetros p...<br />
– Chega de explicar a incompetência de vocês – interrompeu o prisioneiro. – Não quero ouvir suas histórias de amadores. Agora, calados e prestem atenção no que vou dizer. – os irmãos obedeceram contrariados. – Eu sou um caçador como vocês, bem não como vocês – melhor; e cheguei a caçar com o pai de vocês, que Deus o tenha – disse fazendo o sinal da cruz. – Ele sim, era dos bons.<br />
– Obrigado – agradeceu Sam.<br />
– Não me interrompa moleque – resmungou Singer. – A visita é curta e tenho muito o quê contar – prosseguiu. – Eu estava caçando um feiticeiro hudu com Dallas, meu finado parceiro, quando fomos emboscados. O desgraçado do feiticeiro transformou o Dallas em um zumbi e fui obrigado a matá-lo. – os Winchester não puderam disfarçar a cara de indignação. – E não me olhem desse jeito, vocês também já devem ter feito coisas ruins para evitar coisas piores – disse Singer ofendido. – É como dizem no Bar da Estrada: “o trabalho de um caçador é sujo, mas alguém tem que fazê-lo”. – os irmãos não discutiriam a validade daquelas palavras, pois sabiam que havia todo tipo de caçador e não era a primeira vez que topavam com um do tipo Chuck Nory . <br />
– Escutem – pediu Singer, isso aconteceu há quinze dias em uma fazenda de jacarés na região dos pântanos. Eu estava muito ferido e o feiticeiro iria sacrificar uma criança. Eu não tive escolha, liguei para a polícia; talvez se eu tivesse ligado antes a menina ainda estivesse viva. Mas como sempre digo: “não adianta chorar sobre o sangue derramado” – os Winchester se reviraram ao ouvir o comentário infeliz. – De qualquer forma o cara foi preso e só não vai pegar pena de morte porque esse Estado de maricas condena no máximo à perpétua. Portanto, para todos os efeitos, cumpri a minha obrigação como caçador tirando mais um monstro das ruas – vangloriou-se o prisioneiro.<br />
– Porém...? – instigou Dean.<br />
– Porém, foi o que eu pensei, mas estava errado – concluiu Singer.<br />
– No telefonema o senhor nos disse que o feiticeiro continuou a matar, mesmo depois de preso – disse Sam.<br />
– É, o filho de mãe matou a promotora com uma maldição ou encantamento. Eu tentei alertar as autoridades, mas como de praxe os sabichões não acreditam em feitiçaria. E como podem ver não posso fazer muito pessoalmente – disse Singer exibindo suas algemas.<br />
– Verificamos o seu caso Sr. Singer – informou Sam. – Você foi pego em flagrante e está sendo processado por porte ilegal de armas com intenções terroristas...<br />
– Eu tenho licença para portar armas de fogo! – protestou Singer.<br />
– Sim, mas não para armamento militar, incluindo granadas. Sem falar que sua licença é canadense – explicou Sam. – Mas a lista continua: também é acusado de resistir à prisão e omitir informação a policia. E os federais acham que você é cúmplice do feiticeiro Eric Kripke.<br />
– Mas eles não podem provar que sou culpado! <br />
– Nem você que é inocente – retrucou Dean.<br />
– É ai que vocês entram – disse Singer. – Pensei em passar o caso para um caçador mais experiente, mas quando liguei para Ellen no “Bar da Estrada” informando minha situação, ela me recomendou vocês. A Ellen me garantiu que atualmente eram os melhores caçadores da nova geração. Apesar de não gostar da “nova geração” confio na Ellen. E como conseguiram chegar até mim em uma prisão de segurança máxima sem serem presos também é sinal que algo vocês herdaram do velho John.<br />
– Isto foi fácil, relativamente arriscado, mas fácil – garantiu Dean. – O Sammy manja de direito e eu sou cara-de-pau, um pulo no xérox e pronto, somos seus novos advogados. É claro que assim que sairmos daqui vamos ligar para Ellen providenciar um advogado de verdade para você. Ainda que umas férias forçadas até que te fariam bem, você tá acabadaço, camarada – provocou Dean.<br />
– Seu...! – gritou Singer se levantando irritado e sendo segurado por um guarda que informava com um gesto de mão que a visita tinha terminado. – Se vocês estragarem a minha caçada juro que quando sair daqui darei cabo de voc... – ainda puderam ouvir o prisioneiro gritar enquanto era arrastado de volta a sua cela.<br />
– Droga Dean! Ele podia ter nos dado mais pistas – reclamou Sam enquanto se levantavam para ir embora.<br />
– Não esquenta Sam. Winchesters amam desafios. Mas você tem razão, fui duro com o tiozinho. Nós temos até algo em comum.<br />
– Vocês? Deixa eu adivinhar: ambos são estúpidos?<br />
– Há-há! Muito engraçado. Eu me refiro ao fato dele não gostar da “Nova Geração”, eu também prefiro a “Clássica”.<br />
– Dean, acho que o Singer não estava se referindo a série de TV “Jornada nas Estrelas”. Ele estava era nos insultando.<br />
– Que pena, por um instante ele me pareceu simpático – concluiu Dean irônico tirando seu paletó ao entrar no Impala 67.<br />
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Os irmãos Winchester encontraram pouca informação relevante nos jornais e na Net. A mídia estava confusa em relação ao caso do “Bruxo de Nova Orlenas” como foi batizado. O que eles conseguiram por meio da pesquisa de artigos foi apenas confirmar a história contada pelo caçador na prisão. Não encontraram informações precisas nem a respeito da forma como a advogada de acusação morrera. Por enquanto a caçada estava nebulosa.<br />
Dean dirigia o Impala rumo ao necrotério da cidade para pegarem informações direto na fonte quando Sam chamou sua atenção intrigado com uma notícia de jornal. <br />
– Dean pare o carro.<br />
– De novo Sam. Eu disse para não exagerar no suco.<br />
– É sério, dê uma olhada nessa notícia de hoje – disse Sam passando para o irmão um jornal recém comprado.<br />
– Liquidação de pneus – leu Dean, você acha que os pneus da minha princesa estão precisando de uma reconchutada? – perguntou baixinho como se quisesse evitar que o carro ouvisse.<br />
– Nada disso, Dean. Olhe aqui, estão informando que a promotoria nomeou uma substituta para a Sra. Stuart que faleceu há três dias atrás obrigando o juiz a suspender o julgamento. <br />
– Parabéns Sam. Você encontrou a próxima vitima – elogiou Dean.<br />
– Vitima em potencial, porque não permitiremos que o canalha ponha as mãos nela.<br />
– Não, realmente não queremos que o canalha ponha as mãos dele na Srta. Ana Marques de Allende. Pelo visto é latina e eu já te disse como aprecio a cozinha mexicana, Sam? – disse Dean babando em cima da fotografia da advogada que assumia a acusação do Bruxo de Nova Orleans. <br />
O impala fez uma curva fechada no meio de uma avenida e deu meia volta.<br />
– Hei Dean, o que está fazendo? Ainda temos que consultar os registros no necrotério – lembrou Sam.<br />
– Aposto que encontraremos uma cópia de tudo que necessitamos no escritório da Srta. Ana.<br />
– Não creio que ela esteja disposta a ceder tudo o que nós necessitamos, Dean – disse Sam reprovando os impulsos do irmão.<br />
– Você está subestimando meus talentos de persuasão. Deixa a meritíssima comigo.<br />
– Ela não é juíza – corrigiu Sam. <br />
– Não faz mal, eu não tenho juízo. Combinamos.<br />
– Dean, o trocadilho foi péssimo e você não presta.<br />
– Não é o que as mulheres pensam.<br />
– Isto até te conhecerem, é claro.<br />
– Detalhes, detalhes – concluiu Dean viajando em sua imaginação.<br />
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Cap. 2: “Os espinhos da Rosa”<br />
Sam não concordava com os motivos nada inocentes que levaram Dean a trocar o necrotério pelo Tribunal de Justiça, mas não podia discordar que visitar uma jovem advogada era mais agradável do que enfrentar o cheiro de formal e o frio de um necrotério. E Sam também tinha consciência de que não ficava tão bem de branco quanto de terno.<br />
Não foi difícil para eles se infiltrarem no prédio, mesmo estando amarrotado de policiais e jornalistas, nunca era difícil para eles entrar em qualquer lugar – o difícil era sair. Os irmãos estavam disfarçados de agentes do FBI, arriscando-se muito, pois não “eram” os únicos federais no tribunal, mas a balburdia da imprensa era tamanha que os seguranças estavam mais preocupados com os jornalistas do que com um federal a menos ou a mais.<br />
Eles haviam pegado à planta do edifício no site da prefeitura e foram direto para o escritório da promotora encarregada do caso do Bruxo de Nova Orleans. No corredor, eles passaram por duas mulheres, uma tinha cara de secretária ou assistente e carregava uma pasta de documentos, a outra fazia perguntas a primeira a respeito de um caso em andamento. Os irmãos reconheceram esta como sendo a mesma da fotografia no jornal.<br />
A mulher tinha vinte e quatro, mas aparentava ser mais jovem, trazia o cabelo negro e comprido discretamente amarrado e usava saia comprida, salto alto e uma camisa social como mandava a moda feminina nos tribunais, mas em breve começaria sua primeira sessão e ela vestiria a clássica bata por cima da roupa escondendo seu corpo delicado e leve. <br />
Dean e Sam disfarçaram sua presença fingindo que conversavam sobre banalidades evitando olha-la diretamente, o que foi desnecessário; pois ela estava tão concentrada no caso que não os teria notado nem se estivessem caminhando pelados pelo prédio. E antes que a Dra. Ana virasse no final do corredor Dean deu uma boa olhada na “retaguarda” dela encabulando Sam que balançava a cabeça de um lado para o outro.<br />
O passo seguinte seria recorrer ao charme do Dean para distrair a secretária enquanto Sam vasculha-se o escritório da Ana. Mas a sorte estava do lado dos Winchester. A mesa da secretária estava vazia com um aviso de “em sessão” o que presumiram que significasse que ela estava auxiliando a promotora em uma sessão. Provavelmente, a secretária era a moça que estava com a promotora. Sam se sentiu grato por não ter que ver seu irmão dar em cima de outra mulher, aliás, estava se convencendo daquela teoria que diz que as mulheres gostam de bad boys.<br />
Dean usou uma gazua feita com clipe de papel para abrir a porta do escritório. Eles ligaram o modo lanterna de seus celulares e começaram a vasculhar o local. Como tinham experiência em invasão e procura por pistas não tiveram que revirar o lugar. Apenas abriram a gaveta marcada com a letra “K” de um arquivo puxando-a devagar para não fazer nenhum ruído e retiraram a pasta nomeada “Kripke, Eric”.<br />
Era um arquivo extenso e os irmãos não tentariam lê-lo ali e também não podiam pegá-lo emprestado. A falta daqueles documentos poderia resultar no arquivamento do caso, o que só beneficiaria o feiticeiro, o qual queriam garantir que não escapasse impune. A solução foi usar um dos celulares para fotografar os textos e fotografias que formavam o arquivo.<br />
Trabalho feito, eles colocaram a pasta de volta em seu lugar e se preparam para sair. Dean terminava de fechar a porta quando a doutora pareceu no corredor ainda vestida com a bata do julgamento.<br />
– Posso saber o que estão fazendo parados em frente do meu escritório? – perguntou Ana desconfiada.<br />
– Estamos esperando por voc... digo pela doutora para fazermos umas perguntas de rotina – respondeu Dean escondendo a gazua no bolso.<br />
– Somos os agentes Axel e Osborne da divisão de crimes ritualísticos do FBI – disse Sam improvisando enquanto mostrava de relance seu distintivo assim como seu irmão.<br />
– Nunca ouvi falar dessa divisão – disse Ana impaciente.<br />
– É uma divisão nova e experimental. Esse é praticamente nosso primeiro caso – disse Dean tentando ajudar.<br />
– Entendo – disse Ana se acalmando, então vocês não vieram por causa do Bruxo, mas para investigar a forma incomum que minha colega morreu.<br />
– Exatamente – concordou Sam. – E já que nos entendemos que tal responder algumas perguntas para nós?<br />
A promotora não estava certa das reais intenções daqueles dois estranhos, mas o seu sexto sentido lhe dizia para não ficar sozinha no momento “e até que esses dois não parecem ser má companhia”, pensou consigo.<br />
– Ok, mas quero que saibam que não engoli esta história de Aquivo-X, para mim os dois são mais suspeitos que raposas em um galinheiro. Rasgo meu diploma senão forem repórteres mal disfarçados. Contudo tive uma primeira sessão de julgamento excelente e não me importo em dar uma entrevista aos “senhores roqueiros” – disse pouco convincente enquanto abria a porta e os convidava a entrar.<br />
– Está é das minhas – comentou Dean para o irmão com malícia.<br />
– Se comporte – pediu Sam baixinho também impressionado com a perspicácia da promotora. E com um algo mais que não queria admitir. <br />
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– A doutora tem um escritório muito bonito, combina com a dona – disse Dean atrevido entrando no escritório. <br />
Ana ignorou o galanteio e pediu que eles se sentassem. Ela estava se esforçando para parecer séria e não deixar transparecer que gostou do elogio, mesmo se tratando de uma cantada barata. <br />
– Onde estávamos mesmo? – perguntou Ana tentando se recompor.<br />
– Eu estava dizendo como a doutora é bonita e... aí!<br />
– Estamos trabalhando – lembrou Sam dando uma cotovelada no irmão. – Por favor, queira desculpar o meu colega, doutora. Ele fica bobo perto de mulheres encantadoras, mas se não for incomodo gostaria que a doutora contasse o que aconteceu com a promotora Stuart. E antes que nos deslumbre novamente com sua sagacidade, confesso que se fossemos do FBI já teríamos em mãos o relatório primário com seu depoimento. A doutora adivinhou, somos do Jornal Expresso de Nova York – disse Sam. <br />
– Não é agradável relembrar o que vi, mas tudo bem, farei isso por vocês agora que começaram a agir honestamente comigo. Mas pode me chamar de “você” – disse Ana para Sam. – “Doutora” para você Don Juan – emendou se dirigindo ao Dean que ficou sem graça. – A promotora Stuart havia tido “vertigens” durante uma sessão do caso Eric Kripke há três dias e o juiz concedeu um intervalo para que ela pudesse se recuperar. Eu supus que fosse apenas efeito do estresse ao qual estava sendo sujeitada no processo. Condenar um serial killer é sempre traumático...<br />
– Desculpa interrompe-la – disse Dean, mas este Kripke matou mais crianças?<br />
– Ainda estou tentando provar que ele é responsável pelo desaparecimento de outras doze crianças. Mas até o momento não encontramos os corpos – explicou Rose.<br />
– E sem corpo, sem crime – disse Sam.<br />
– Mas estamos fugindo do tema da entrevista, a morte da promotora Stuart. Eu dizia que o juiz deu um tempo para ela descansar. As más línguas, de homens principalmente, diziam que a promotora estava “naqueles dias” ou certamente grávida. Pensamento tipicamente machista que impera nos tribunais e torna a pressão sobre as advogadas muito maior que sobre os homens. É essa cobrança extra é que deve ter feito mal a minha colega, ainda que eu duvide que foi o estresse que expulsou todo o sangue do corpo dela. – neste ponto Ana parou para respirar como se estivesse revivendo a cena no banheiro. – Quando o tempo esgotou fui ao banheiro feminino ver porque ela estava demorando – continuou Ana. Foi então que a encontrei de joelhos vomitando sangue. Gritei por ajuda e tentei socorre-la, mas foi inútil; ela já estava morta quando agachei ao lado dela me encharcando na poça de sangue. <br />
– A polícia não informou aos jornais à causa da morte – observou Sam. – Haveria a possibilidade de ter sido um assassinato para impedir que ela prosseguisse com o julgamento. Talvez um cúmplice do Kripke?<br />
– Não havia ninguém no banheiro quando entrei, e no corredor tinha um guarda que garantiu que a promotora Stuart ficara sozinha até eu ir procurá-la.<br />
– A janela do banheiro – sugeriu Dean.<br />
– Fora de questão – disse Ana, são vitrôs minúsculos com grades no terceiro andar virado para a rua. O Peter Pan não conseguiria passar por ali. E além do mais, não foi encontrado nenhum sinal de luta.<br />
– Nenhum mesmo? – perguntou Sam.<br />
– Depende.<br />
– Como assim?<br />
– É que já saiu o laudo do legista e fui informada que diferente do que suspeitavam não foi encontrada nenhuma substância nociva em seu organismo. Chegou-se a suspeitar de radiação e de câncer, mas a autopsia comprovou que ela era uma mulher saudável. Contudo, o legista identificou escoriações que iam da garganta até o estômago como se tivesse sido obrigada a engolir algo, como uma mangueira de aspirador de pó ligado ao máximo. A última anotação do legista foi que o estômago da minha colega estava virado pelo avesso e entalado no esôfago – disse Ana olhando para o chão resistindo ao impulso de chorar.<br />
– Sentimos muito pela morte de sua colega de forma tão brutal – disse Sam tentando consola-la.<br />
– No nosso trabalho vemos muita barbaridade como essa, mas nunca nos acostumamos – disse Dean. – Mas a doutora acha que a promotora não morreu de causa natural? <br />
– A não ser que cólicas possam virar vísceras pelo avesso – respondeu Ana. – Eu não sei como, mas o culpado só pode ser o Kripke por meio de um cúmplice; e vou descobrir como ele a matou e somarei mais este crime a sua ficha – afirmou com obstinação. <br />
– E você nem a polícia têm uma pista ou suspeita? – perguntou Sam.<br />
– Para a polícia a morte da promotora Stuart não tem ligação com Eric Kripke. Segundo eles, Kripke agia sozinho, sem cúmplices, amigos ou parentes que pudessem auxiliá-lo. E de sua cela seria impossível ter atacado minha colega. – Sam e Dean se entreolham para expressar que aquilo não era bem verdade. – Mas pedirei que refaçam os exames da autópsia – continuou Ana, pois devem ter deixado algo escapar.<br />
– Doutora, você disse que sua colega teve “vertigens” durante a sessão que antecedeu a morde dela. Poderia descrever exatamente as reações dela? – pediu Sam.<br />
– Bem, ela alegou vertigens, mas eu diria que ela teve visões. – Ana mudou sua expressão de repente e os irmãos perceberam que a entrevista estava prestes a render frutos.<br />
– Visões, você disse? Como assim? – perguntou Dean interessado.<br />
– É, visões. O olhar dela se perdia em um canto do tribunal e então ela se desconcentrava como se estivesse hipnotizada – explicou perturbada.<br />
– Curioso – comentou Dean para Sam. – Por acaso, foi como se sua colega tivesse visto um fantasma? – Dean perguntou tentando soar o mais natural possível.<br />
Ana não precisou responder a pergunta por que uma batida na porta interrompeu a entrevista.<br />
– Por favor, entre detetive Stone – disse Ana se levantando.<br />
Um homem entrou no escritório apontando uma arma para os irmãos que não puderam reagir.<br />
– Mãos na cabeça e devagar – ordenou o sujeito.<br />
– Calma detetive – pediu Ana dando a volta na sala para se por ao lado do policial. Eles são inofensivos. No início pensei que fossem matadores profissionais, mas provavelmente são o que disseram ser, jornalistas amadores, nem perceberam quando enviei uma mensagem para você de meu celular. <br />
– Por via das dúvidas levarei esses dois para uma verificação de identidade e um interrogatório – disse o detetive. – Não se preocupem rapazes, se forem inocentes escapam apenas com um “puxão de orelhas” e uma advertência, mas depois do que aconteceu com a promotora Stuart todo o cuidado é pouco – disse levando-os para o corredor.<br />
– Parabéns, você nos pegou de jeito – disse Dean para a promotora.<br />
– Achou mesmo querido que eu sou tão inexperiente assim para sair dando informações preciosas a torto e a direito? Arriscando atrapalhar as investigações e o julgamento? Eu estava apenas enrolando vocês até o detetive chegar para prendê-los. E tem mais, Stone, não esqueça de conferir os celulares deles. Aquela gaveta mal fechada em meu arquivo bem na letra “K” me diz que eles andavam bisbilhotando aonde não deviam – disse apontando para o seu arquivo.<br />
– Ela realmente é das minhas – comentou Dean para Sam.<br />
Sam pensava apenas em como mais uma vez sair estava provando ser mais difícil do que entrar. <br />
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Cap. 3: “O vulto assassino”<br />
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O mistério vinha se intensificando em torno do caso do “Bruxo de Nova Orleans”, mas de uma coisa os irmãos Winchester tinham certeza: estavam encrencados e não sairiam daquele prédio apenas com um puxão de orelhas e uma advertência, não com a ficha criminal que eles tinham. Assim que o detetive Stone recolhesse suas digitais estaria tudo perdido. Portanto, teriam que fazer algo a respeito e rápido, para o azar do detetive Stone que estava no caminho deles. <br />
O detetive Stone chamou um dos seguranças do tribunal para ajudá-lo a escoltar seus prisioneiros até uma sala livre para interrogá-los. E como ao revistar suas roupas não encontrou nenhuma arma julgou que realmente se tratava apenas de dois jornalistas inofensivos, por isso, cometeu o erro de não os algemar. E enquanto verificava a carteira de Sam baixou a guarda dando a oportunidade perfeita para Dean tomar a arma do segurança e render os dois.<br />
– Parados! Não queremos confusão. – disse Dean enquanto desarmava o detetive.<br />
– Para quem não quer confusão você está sendo contraditório – observou Stone tirando um monte de identidades falsas da carteira do Sam. – Meninos maus, meninos maus – repetia Stone devolvendo a carteia. – Vocês nunca vão sair daqui vivos – alertou.<br />
– Deixa de terrorismo, detetive. Ficaria impressionado com as vezes que escapamos vivos ou “quase” de lugares muito piores e mais bem guardados que este – disse Sam pegando sua carteira. – E quem disse que queremos ir embora? Ainda não terminamos nosso trabalho por aqui. <br />
– Agora caminhem discretamente pelo corredor até a sala de segurança sem olhar para as câmeras de vigilância – ordenou Dean.<br />
Os quatro encontraram alguns advogados e assistentes no caminho, mas ninguém prestou atenção neles. Sam ia atrás do segurança e Dean cuidava do detetive Stone. Eles levavam as armas no bolso debaixo da camisa sem intenção de usá-las, mas isso só eles sabiam. Na sala de segurança sacaram as armas novamente e renderam também o sujeito que cuidava das gravações.<br />
Dean amarrou e amordaçou os seguranças em duas cadeiras giratórias e Sam ficou vigiando Stone.<br />
– O que vocês querem? – perguntou Stone impaciente.<br />
– Ajudar – respondeu Sam soando ridículo.<br />
– Ajudar? – repetiu Stone fitando a arma que Sam empunhava.<br />
– É, ajudar – disse Dean. – Mas primeiro você é quem tem que nos ajudar. A sua amiga promotora corre perigo e viemos aqui impedir que façam mal a ela, mas para isso temos que descobrir o que estamos caçando – disse Dean enigmático procurando fitas antigas em uma caixa.<br />
– O seu colega é louco? – Stone perguntou a Sam.<br />
– Ele não é meu colega, é meu irmão. E sim, ele é meio doido, mas logo você se acostuma – respondeu Sam dando nós na cabeça do detetive.<br />
– Eureka! – festejou Dean examinando uma fita. – Sam, a etiqueta diz que é a gravação da última sessão que a promotora Stuart participou – disse colocando-a para rodar.<br />
– Droga! Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui?! – exigiu Stone.<br />
– Mostra para ele, Dean – pediu Sam.<br />
– É pra já – disse seu irmão correndo a fita até um dos momentos em que a promotora emudecia. – Se aproxime detetive e dê uma boa espiada nisso – convidou Dean.<br />
O detetive ficou assombrado com o que viu. Determinadas cenas em que Dean congelava a imagem exibiam um vulto que surgia de repente e da mesma forma desaparecia. A coisa era pouco mais que uma mancha negra com a silhueta de um homem alto e robusto. Ela “pulava” de um canto para o outro da sala sempre seguida pelos olhos da promotora. <br />
– O que é aquilo? – perguntou Stone assustado.<br />
– Aquilo é o assassino da promotora – disse Dean à queima roupa. – E se não confiar em nós aquela coisa irá atacar a promotora Ana também – explicou oferecendo o revólver para o detetive como prova de confiança. – Pegue a arma detetive e faça o que achar certo, mas percebi no escritório que você e a promotora são amigos, e amigos protegem uns aos outros.<br />
O detetive pegou a arma e Sam entregou a sua também. Stone pensou por um momento com as armas nas mãos e por fim as guardou.<br />
– Não sei quem são vocês dois, mas foram os primeiros a lançar uma luz sobre a morte da Sra.Stuart, e por mais estranho que pareça, eu acredito em vocês. Fui eu que liderei a captura do Kripke na fazenda de jacarés; e vi coisas naquela noite que não me deixam dormir até hoje. Eu também sou testemunha de acusação e tenho apoiado ao máximo à promotora Ana, assim como auxiliei Stuart antes de sua morte. E mesmo me considerando um homem cético não posso negar uma certa influência sobrenatural neste caso.<br />
– Excelente detetive, agora falamos a mesma língua – disse Dean. – Mas não temos tempo a perder, acreditamos que esta coisa estava só esperando um novo promotor ser nomeado para tornar a atacar. Você teria nenhuma dica para nos dar?<br />
– Talvez – disse Stone apreensivo. – Eu estive presente na primeira sessão da Ana agora à tarde, e duas ou três vezes ela perdeu a fala e ficou encarando as paredes – disse sacando um dos revólveres. – É melhor vermos como ela está. <br />
Sam e Dean abriram suas valises cheias de jornal e do meio deles retiraram uma espécie de chocalho tribal e um espelho de mão. E deram um amuleto para o detetive que o examinou intrigado.<br />
– Sua arma é inútil, use o amuleto e proteja sua amiga enquanto nós atacamos o demônio – disse Dean muito sério.<br />
Stone colocou o amuleto em volta do pescoço sem discutir. <br />
– Estamos prontos. Vamos! – disse Sam tomando a frente.<br />
Eles saíram da sala de vigilância correndo. E ainda amarrados nas cadeiras os dois seguranças agradeciam por não terem sido convocados para enfrentar demônio algum. Eles estavam de comum acordo que não ganhavam o suficiente para arriscar suas almas.<br />
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O julgamento deixou Ana exausta e a conversa que teve com Sam e Dean trouxe à tona lembranças ruins que pioraram seu humor. Mas tinha que admitir que de certo modo foi bom conversar com os Winchester. Atualmente o único homem com quem conversava era com seu amigo Stone, amizade que herdou da promotora Stuart junto com o cargo. Mas não que a companhia do detetive não fosse agradável, contudo, ele era vinte anos mais velho e só sabia falar do “Bruxo”. Ana sentia que precisava terminar urgente aquele processo, garantir que o Kripke nunca mais saísse da cadeia para então sair e conhecer alguém interessante. <br />
Porém, a mais nova promotora de Nova Orleans não podia se dar ao luxo de pensar em suas necessidades pessoais. Havia interesses públicos em jogo. A promotoria ainda não havia conseguido uma prova sequer do envolvimento de Kripke no desaparecimento e suposta morte de doze crianças antes de Sarah, a última vitima. E o advogado de defesa estava alegando insanidade mental para aliviar a pena de seu cliente, um recurso que apesar de manjado, raramente falhava. Por isso, não podia vacilar ou não só perderia seu primeiro grande caso arruinando sua carreira, como também deixaria de fazer justiça e desonraria a memória de sua falecida colega.<br />
E como nenhuma desgraça vem desacompanha também começara a ter alucinações. Como se já não tivesse problemas suficientes para uma vida inteira, tinha que lidar também com sua mente lhe pregando peças. Ana esperava que o juiz não tivesse percebido que uma ou duas vezes durante a sessão passara mal como a promotora Stuart. Mas se reparou deve ter relevado, interpretando como nervosismo de principiante. E como a explicação mais simples costuma ser a correta, deve ter sido o nervosismo mesmo que a fez ver coisas aonde não havia.<br />
Entretanto, Ana não conseguia se esquecer da coisa nebulosa apontando para ela de jeito agourento. E só se sentiu segura na presença dos dois estranhos que flagrou espionando seu escritório. Ela realmente foi com a cara dos Winchester, mas uma mulher na sua posição e com sua responsabilidade tinha que manter pose de durona. <br />
Ana estava suspirando sentada em sua mesa quando sentiu a temperatura cair bruscamente no escritório. Por um segundo pensou que fosse uma corrente de ar, mas se lembrou que a janela atrás de si estava fechada e o ar condicionado desligado. Foi então que viu a sombra de homem do tamanho de um urso crescer no chão a sua frente e subir até o teto. A criatura que projetou aquela sombra sinistra tinha que estar de pé bem atrás dela. Rose prendeu a respiração e saltou de sua cadeira no instante em que uma mão gigantesca com garras a partiu em duas.<br />
A promotora se arrastava de costas pelo chão, tremendo diante da coisa hedionda que a atacara. O monstro tinha contornos humanos, mas estava em constante mutação como se fosse feito de um líquido ou gás, hora era negro como petróleo, ora translúcido como cristal e dentro rostos desesperados clamavam por socorro. Era uma visão infernal que Ana levaria para o túmulo - mas não hoje. A ajuda havia chegado.<br />
Uma força invisível segurava Ana no ar espremendo-a toda quando Sam, Dean e Stone entraram com tudo no escritório. A criatura os ignorou abrindo sua boca para engolir a cabeça da moça que não podia sequer se debater ou gritar.<br />
Stone descarregou seu revólver no demônio, mas as balas passaram direto por ele se alojando na parede. Sam e Dean tiveram mais êxito com seus artefatos mágicos. Sam agitou seu chocalho cerimonial causando espasmos na criatura que largou Ana no chão. Já Dean mirou o reflexo do espelho no demônio queimando-o. A criatura urrava de dor, mas o som parecia sair da boca de uma dúzia de crianças.<br />
– Você está bem? – Stone perguntou a Ana apoiando a cabeça dela em seu colo.<br />
Ela estava meio inconsciente e o detetive tentava reanima-la enquanto a dois metros dali os Winchester lutavam com uma besta semi-invisível que estava destroçando o escritório com seus espasmos.<br />
– Sam, não está funcionando! Essas coisas machucam o demônio, mas não podem destruí-lo – gritou Dean desviando-se da mesa que veio voando em sua direção e se espatifou na parede.<br />
– Isto não é um demônio hudu. É algo muito pior e mais poderoso – respondeu Sam quando o chocalho em sua mão estourou enchendo seus olhos com areia.<br />
O espelho que Dean usava como arma também estourou e a criatura se vendo livre dos objetos mágicos voltou a atacar Ana.<br />
– Não ouse se aprox...!!! – ia dizendo Stone se interpondo entre a amiga e a criatura que praticamente o atropelou.<br />
O que aconteceu a seguir foi rápido demais para que os Winchester pudessem intervir. O homem foi torcido no ar como um trapo molhado. E o que um dia foi um corpo caiu desmantelado no chão com todos os tendões arrebentados e ossos moídos. Porém ao entrar em contato com o amuleto do detetive a criatura se dissolveu em faíscas desaparecendo. <br />
Um grupo de seguranças armados surgiu na porta do escritório atraídos pelo barulho e viram uma cena macabra: Sam e Dean ajudando a promotora a ficar de pé e ao lado o detetive Stone retorcido em um lago de seu próprio sangue.<br />
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Cap. 4: “O Bruxo de Nova Orleans”<br />
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Vocês tem visita – informou o guarda que vigiava a sala em que os Winchester foram confinados.<br />
Sam e Dean se levantaram para receber a mulher que tinham salvado a pouco mais de uma hora de ser devorada viva por um demônio.<br />
– Ficamos felizes de ver que está bem – disse Sam amigável.<br />
– Bem?! Como posso estar bem depois de ser atacado por um... um... sei lá o quê diabólico e ver um amigo ser trucidado? – desabafou Ana. – E, por favor, quero falar com eles a sós – pediu ao guarda.<br />
– Desculpa doutora, mas recebi ordens para guardar os suspeitos até o FBI vir busca-los – disse o guarda.<br />
– Eu não vou ajudá-los a fugir e se quisessem me fazer mal já teriam feito – retrucou Ana.<br />
– Mas...<br />
– Sem mais. Você pode vigiar do lado de fora – sentenciou Ana, e o guarda não teve escolha senão obedecer. – Pronto, agora podemos falar a vontade rapazes – disse Ana puxando uma cadeira. – Eu já fui informada de quem são: você é Dean e ele é Sam, os famigerados irmãos Winchester, procurados em oito estados americanos com transgressões à Lei registradas em mais seis estados. As acusações vão dê direção perigosa e profanação de túmulos até assassinato a sangue-frio. Já foram detidos algumas vezes e sempre escapam. Mas o que me chamou mais a atenção no dossiê que o FBI me passou foi que vocês são uma versão tímida de “Bonny e Clyde” , evitam os holofotes, mas não as confusões e entre aqueles que seguem a trilha deixado por vocês corre uma “lenda urbana” de que são dois caçadores de demônios e criaturas sobrenaturais em geral. Então rapazes, por onde querem começar a se explicar? – Disse a promotora cruzando os braços e se ajeitando na cadeira na expectativa de uma longa história.<br />
– Acho que encontramos uma mulher com detector de mentiras embutido, Sam. O que fazemos agora? – perguntou baixo para o irmão.<br />
– Acho que é hora de contar a verdade – disse Sam em voz alta para que a promotora ouvisse claramente.<br />
– Ok Sam – concordou Dean. – Doutora, você nos pegou de jeito dessa vez. Admitimos, somos “Bonny & Clady”, eu sou o Clady, é claro. E muito nos envaidece saber que viramos uma “lenda urbana”. Pode ser que isso explique porque é tão difícil dar cabo da gente. Mas já demos provas de que somos os mocinhos e não vejo necessidade de convencê-la de que criaturas sobrenaturais existem. Estou errado?<br />
– Não – respondeu Ana. – Senão acreditasse que aquela coisa é real eu já teria entregue os dois para a custódia dos federais. Pedi ao juiz que os mantivesse por perto porque estavam envolvidos no caso do “Bruxo” e precisava do depoimento de vocês. Porém, não vou mentir tem um monte de tubarões do FBI vindo para cá agora mesmo brigar por um pedaço dos irmãos Winchester. E mesmo com o meu depoimento a favor de vocês a polícia os têm como principais suspeitos de terem matado o detetive Stone. Só não sabem explicar como fizeram tamanho estrago com as mãos. Confesso que nem tentei explicar sobre a coisa, não seria inteligente da minha parte por a culpa em uma assombração – disse Ana.<br />
– Agiu corretamente – disse Dean. O juiz iria afastá-la do caso se desconfiasse que vê “pessoas mortas” – disse imitando a voz do garoto em o “Sexto Sentido”.<br />
– Ok – disse Ana, vocês são como caçadores de recompensa, mas em vez de caçarem criminosos foragidos caçam almas perdidas. Incrível, mas suspeito que não são os primeiros caçadores que conheci nesta semana – contou Ana pensativa.<br />
– Você conhece outro caçador? Quem? – perguntou Dean.<br />
– Ela deve estar se referindo ao Singer – apressou-se Sam em dizer.<br />
– É ele mesmo, Robert Singer de 55 anos e canadense. Foi quem ligou para a polícia entregando o paradeiro de Kripke. O sujeito está detido na prisão de segurança máxima de Nova Orleans sobre tantas acusações quanto vocês. Sinceramente, nem Stuart, Stone ou eu achamos que ele seja culpado, ao menos quanto a ser cúmplice do Kripke, mas o infeliz foi pego pelo Stone todo ferido na cena do crime com uma arma na mão e um tal de Dallas, amigo dele, morto no chão. Os dois eram canadenses, mas viviam na América sem residência fixa ou trabalho. A promotoria tentou fazer um acordo com o Singer, mas ele não consegue sequer explicar de forma coerente o que estava fazendo com um arsenal de guerra na fazenda de jacarés de um psicopata. Todavia, as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar e o caso começa a fazer sentido, mas ainda está fantástico demais para ser apresentado a um júri popular – lamentou Ana.<br />
– E vai ficar pior – disse Dean. – Mas, por favor, nos conte o que foi que o velho Singer declarou em seu depoimento oficial. <br />
– Vejamos – disse Ana forçando a memória. – Ele declarou que ele é seu colega haviam saído para caçar jacarés, mesmo sabendo que era ilegal. A noite caiu e eles se perderam no pântano escuro. Mas uma luz ao longe, que a principio julgaram ser um fogo-fátuo, os atraiu e deram com uma cabana dessas suspensas sobre a água lodosa do pântano. E segundo Singer, ele e seu colega de caça se aproximaram cautelosamente do lugar temendo que fosse o esconderijo de algum bandido. Singer disse que havia ouvido falar que era comum seqüestradores usarem cabanas na região dos pântanos como cativeiros. Então pensaram que poderiam investigar aquela e quem sabe prender algum seqüestrador e ganhar uma recompensa em dinheiro. Porém, ao espiarem por uma janela o que encontram foi o Kripke vestindo trajes cerimoniais invocando espíritos malignos diante de uma lareira rudimentar. E as chamas dela eram altas e crepitavam como línguas vermelhas açoitando o ar a cada palavra dita pelo Kripke na língua hudu. Mas o mais assustador era que entre ele e o fogo estava uma menina amarrada e deitada no chão. Ela estava acordada, mas mexia o pescoço e revirava os olhos como se estivesse dopada. Singer e Kripke não pensaram duas vezes e invadiram a cabana armados.<br />
– É bem a cara dele – comentou Dean interrompendo-a. – Desculpa, o que aconteceu quando eles entraram?<br />
– Singer alegou que ao arrombarem a porta o feiticeiro jogou um pó na lareira e uma bola de fogo estourou na direção deles como uma bolha de sabão incandescente. Eles se jogaram de lado rolando pelo chão e quando Singer se levantou a cabana estava tomada por uma fumaça fedida e arroxeada. A sua frente estava o feiticeiro no mesmo lugar rindo para ele. Singer quis abatê-lo com um tiro, mas foi derrubado primeiro por uma coronhada na nuca.<br />
Ao despertar estava amarrado em um pilar no centro da cabana. O seu parceiro Dallas estava de pé montando guarda com uma doze apontada para o peito dele. Singer perguntou ao amigo o que estava havendo, mas Dallas babava em resposta com os olhos brancos. O feiticeiro então apareceu em seu campo de visão e se apresentou. Disse que se chamava Eric Kripke e que não gostava de visitas surpresas - principalmente em noite de sacrifício. Singer ameaçou sem efeito algum além de provocar mais risos no feiticeiro. Ele explicou que Dallas agora era seu escravo e se Singer ainda estava vivo era porque precisa de alguém para um experimento assim que terminasse o sacrifico. E recomeçou o ritual desde o inicio enquanto Dallas vigiava Singer. <br />
A situação era grave e Singer não via como se soltar e mesmo que pudesse suas armas foram retiradas, mas um volume no bolso de trás da calça dele salvou-lhe a vida. Dallas não havia pego seu celular e com muito trabalho Singer discou para a polícia e tentou forçar uma conversa comprometedora com o Kripke em voz alta. O Feiticeiro não quis saber de papo e amordaçou Singer para que não atrapalhasse mais o ritual e avisou que só não lhe cortou a língua porque não podia profanar o punhal antes sacrificar a pequena Sarah. E a atendente da polícia estava ouvindo e gravando tudo. O detetive Stone e sua equipe foram mobilizados e partiram para a região dos pântanos rastreando o sinal do celular. <br />
Eric Kripke estava terminando o ritual e estava a ponto de degolar sua vitima quando o som de uma tabua rangendo chamou sua atenção. Alguém da equipe do Stone fora descuidado e pisara numa tabua solta na ponte que levava até a cabana denunciando o ataque. Lá dentro o feiticeiro praguejou e mudando de oração levantou as mãos para o alto invocando seus aliados do pântano. <br />
– Aliados? Perguntou Sam.<br />
– Jacarés, os maiores já vistos nessas bandas – disse Ana. – Foi o que Stone colocou em seu relatório. Ele disse que dezenas de lagartos endemoniados saíram do lodo e atacaram os policiais que cercavam a cabana. Foi um massacre, dos vinte e dois homens da equipe metade foi retalhada até a morte e a outra escapou mutilada, muitos jacarés morreram também fuzilados. <br />
– Agora me lembro. Nós lemos a respeito nos jornais. Bizarro – disse Dean não se contendo.<br />
– Stone foi o único que chegou a entrar na cabana – continuou Ana. – Ele entrou atirando pela porta arrombada e foi recebido pela doze de Dallas que o atingiu de raspão no ombro direito. Mas Dallas também foi acertado caindo encostado ao Singer que o enlaçou com as pernas e o sufocou. <br />
Enquanto corria essa algazarra Kripke pulava estágios do ritual e com um corte limpo abria a garganta de Sarah jogando seu corpo em seguida nas chamas da lareira. Kripke estava entretido em seu duelo com Dallas e não viu a triste cena, mas Singer testemunhou Sarah ser consumida pelo fogo. Stone lembrava apenas de ter ouvido um grito estridente de criança e uma explosão vinda da lareira que espalhou uma cortina de fogo pelo teto de palha da cabana.<br />
O detetive libertou Singer que estava se engasgando com a fumaça e juntos se arrastaram para longe dali. Eric Kripke estava fugindo quando surgiram reforços. Um helicóptero da polícia lançou suas luzes sobre ele que se rendeu ajoelhando-se na lama e pondo as mãos na cabeça ainda empunhando o punhal manchado de sangue.<br />
– Uau, que história sinistra mesmo para os nossos parâmetros – disse Sam. – Mas li que não encontraram o corpo da pobre menina.<br />
– Infelizmente, é verdade – confirmou Ana. – O pântano foi drenado e os destroços da cabana vasculhados minuciosamente, mas não foi encontrado um fio de cabelo ou osso que pudesse incriminar Kripke pela morte de Sarah e muito menos do desaparecimento das outras doze crianças, todas de sete anos com o mesmo perfil da Sarah. A hipótese mais plausível é de que o Kripke alimentou os jacarés com os corpos das crianças e queimou suas roupas. Tem sido um desafio, mas a promotoria tem trabalhado apenas com o punhal como prova e com o testemunho de um sujeito que a palavra não vale muito.<br />
– Você está se referindo ao Singer? – perguntou Dean.<br />
– Sim – respondeu Ana, como disse ele está na penitenciária esperando ser convocando para depor perante o júri. <br />
– E o Kripke, onde ele está? <br />
– Na mesma penitenciária – disse Ana tentando entender aonde Dean queria chegar.<br />
Os irmãos se entreolharam e resmungaram coçando a cabeça.<br />
– O que foi? Qual o problema agora? – perguntou aos rapazes inquietos.<br />
– Ana, é o seguinte, a coisa que matou a promotora Stuart e o detetive Stone está fazendo uma “queima de arquivo”. Primeiro ele atacou a promotora, depois a substituta e o detetive que prendeu seu mestre. E como a criatura falhou em eliminá-la, presumimos que antes de tentar novamente passará para o próximo da lista.<br />
– De qualquer forma o Singer está bem protegido – disse Ana.<br />
– Ninguém está protegido daquela coisa enquanto não dermos um jeito no Kripke. E ele já deve estar sabendo que há mais caçadores envolvidos e irá tomar providências. Doutora, você tem que ajudar a levar eu e meu irmão à penitenciária urgente – disse Dean aumentando a voz.<br />
– Esperem, irei ligar para um amigo que trabalha na penitenciária verificar os prisioneiros – disse a promotora tirando um celular branco de sua bolsa. <br />
– Rapazes, vocês têm razão, há algo de estranho acontecendo na penitenciária – disse preocupada guardando seu aparelho.<br />
– Seu amigo falou que o Kripke escapou ou Singer foi morto?<br />
– Não Dean, pelo contrário, disse que está tudo bem por lá. – os irmãos fizeram cara de interrogação. – Meu amigo falou com a voz mole igual ao advogado que defendi o Kripke, que aliás, se comporta de um jeito parecido com o que Singer descreveu o Dallas.<br />
– E agora? Alguma sugestão? – perguntou Dean para a promotora.<br />
– Tenho sim – disse tirando uma arma de sua bolsa. – Eu chamo o guarda, vocês fingem que estão me seqüestrando, trancam ele aqui, pegamos o carro de vocês e fazemos uma visita noturna à penitenciária. Ou acham que não conseguiriam entrar lá? – perguntou sorrindo.<br />
– Entrar é fácil – disse Dean animado.<br />
– Sair é que é difícil – completou Sam apreensivo.<br />
Cap. 5: “A noite dos zumbis”<br />
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Na estrada rumo à penitenciária ao entardecer.<br />
–Vocês têm um belo carro – elogiou Ana no banco de trás.<br />
– Valeu – agradeceu Dean vaidoso.<br />
– Ele era do nosso pai – disse Sam sereno.<br />
– Eu li sobre o pai de vocês. Foi ele que os ensinou a caçar?<br />
Os irmãos apenas confirmaram com um balanço de cabeça.<br />
– E sem querer ser impertinente, mas ele deu uma aula sobre essa coisa em especial que está matando para o Kripke?<br />
– Quando caçamos com ele nunca topamos com nada parecido, nem há indicações no diário que nosso pai nos deixou com instruções de como caçar essas criaturas. Mas estamos na estrada há um bom tempo e aprendemos muito por conta própria. – disse Sam carregando sua arma com munição de sal grosso.<br />
– Então sabem o que estão caçando? – insistiu Ana.<br />
– Sabemos. É um It ou devorador de alma como é mais conhecido no Haiti apesar de não pertencer ao hudu precisamente. É uma aberração fantasmagórica inventada por brancos que se meteram a praticar magia negra misturando hudu, vudu e satanismo. Mas pensamos a principio que fosse um demônio ou entidade hudu a serviço do Kripke. Por isso usamos o chocalho e o espelho que costumam funcionar bem contra o tipo de coisa conjurada em um ritual genuinamente hudu – disse Sam.<br />
– Porém, Its não são conjurados, são gerados no puro mal – disse Dean no volante.<br />
– Como Kripke gerou o It? – perguntou Ana sentindo um frio na barriga.<br />
– Você não vai querer saber – disse Dean.<br />
– Por favor, me digam. Eu desconfio, mas não posso acreditar que alguém seja tão cruel. – disse a promotora.<br />
– Certo – disse Sam, há várias maneiras para se gerar um devorador de almas, mas Kripke optou pela clássica. Ele raptou treze crianças de sete anos e as descarnou alimentando com seus ossos uma chama infernal. O fogo e a cinza dos ossos vira uma criatura disforme e translúcida que passa a viver em um fetiche, um objeto mágico como a lâmpada de Aladim. Então quando alguém aborrece o dono do objeto basta que ele escreva o nome de seu desafeto com sangue no objeto para que o It saia à caça de sua alma. Mas como Kripke foi atrapalhado na etapa final do ritual o It que ele gerou não é dos mais fortes – explicou Sam. <br />
– Fala sério Sam, não lembro de termos enfrentado um monstro tão forte antes. – protestou Dean.<br />
– Concordo, mas acredite, se o Stone e o Singer não tivessem atrapalhado o Kripke ele teria gerado um monstro invencível e a essas horas já estaríamos mortos.<br />
– Espere um momento! – disse Ana chamando a atenção dos irmãos. – Quer dizer que aquele It tentou comer a minha alma? – perguntou Ana nauseada.<br />
– Alma ou espírito – disse Dean, não sabemos se há diferença e se houver, qual porção espiritual agrada mais ao paladar de um It. <br />
– Então aquela dor insuportável que subia pelo meu corpo quando fui atacada como se meu espírito estivesse sendo arrancado pela raiz...<br />
– Você entendeu doutora – cortou Dean.<br />
– E como se destrói um devorador de almas?<br />
– Quebrando o fetiche que quase sempre é um livro ou pergaminho – respondeu Sam. <br />
– O Kripke se “converteu” ao cristianismo na prisão e comparecia ao tribunal sempre com uma bíblia de bolso. – comentou Ana. – Seria o disfarce perfeito, quem desconfiaria de uma bíblia? Meu Deus, quando o assunto é “Kripke” tenho a impressão que os sacrilégios não têm fim. <br />
– Melhor assim, pelo menos já temos um alvo. Agora é só acertá-lo. – disse Dean acelerando o Impala.<br />
No horizonte o Sol descia sangrando sob o peso da noite. <br />
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***<br />
Ao cair da noite no portão da penitenciária.<br />
O advogado de Kripke está na entrada da prisão pedindo permissão para visitar seu cliente, mas o guarda da noite explica que apenas com um mandato expedido por um juiz ou com ordem do diretor era permitido visitas fora do horário normal. O advogado com ar débil não discutiu; ele simplesmente seguiu a recomendação dado pelo seu mestre caso alguém não cooperasse; tirou um pouco de um pó roxo do bolso interno de seu paletó e sobrou no rosto do guarda que passou a cooperar imediatamente.<br />
O advogado repetiu o procedimento com todo mundo que encontrou pelo caminho deixando para trás um rastro de zumbis babões. Ele pegou a chave do chefe dos guardas e consultou em um mapa na parede onde ficava a cela de seu mestre, dois minutos depois estava diante de Kripke que lia uma bíblia de bolso sentado em sua cama.<br />
– Fez o que eu ordenei? – perguntou Kripke sério.<br />
O advogado em vez de responder abriu sua valise e retirou dois embrulhos que entregou a Kripke.<br />
– Perfeito, você me serviu bem – disse o prisioneiro examinando os embrulhos. – Agora procure um lugar alto e mergulhe de cabeça – ordenou ao advogado que saiu sem pestanejar a procura de uma janela sem grades. <br />
Kripke pegou um dos embrulhos e tirou o pano vermelho que o envolvia. Era um pacote de plástico cheio do mesmo pó roxo que o advogado usou para controlar a mente dos guardas. Ele derramou o conteúdo do pacote no chão formando um montinho, em seguida deu início a um mantra mágico, e um rodamoinho sobrenatural começou a soprar em sua sala. O vento suspendeu o pó e saiu pelos corredores espalhando-o por todas as frestas. Quando terminou só havia dois homens lúcidos na penitenciária. Um deles era o próprio Kripke e o outro estava na lista negra do devorador de almas.<br />
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***<br />
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O Impala parou na frente do portão do presídio e os três passageiros desceram dele. Não havia luzes nas guaritas do muro e nenhum som vinha de dentro do presídio. <br />
– Olhem ali – apontou Ana reconhecendo o carro do advogado de Kripke estacionado logo enfrente. <br />
– Isso explica porque o lugar parece um cemitério – disse Dean. – Quer apostar que o filho da mãe é um zumbi, Sam?<br />
– Não só é um zumbi como a essa altura já transformou todo mundo aí dentro também – disse Sam.<br />
– Os dois poderiam parar de falar em língua de caçador para que eu possa entender? – reclamou Ana.<br />
– Foi mal – disse Dean. – O Kripke está usando uma fórmula milenar a base de veneno de baiacu muito popular entre feiticeiros para controlar a mente das pessoas. <br />
– E zumbis são como mortos-vivos? <br />
– Não, esse é um clássico erro de generalização. Os zumbis são seres vivos, pessoas manipuladas como marionetes – esclareceu Sam.<br />
– Tipo como se estivessem hipnotizadas? <br />
– Antes fosse – lamentou Dean, pessoas hipnotizadas conservam o instinto de auto preservação, já um zumbi é cem porcento dependente da vontade de seu amo. Dá até pra ordenar que se suicidem. Mas dependendo da dose de veneno de baiacu a qual foi submetido um homem pode aparentar um aspecto levemente doentio como o advogado do Kripke, ou se comportar como um legítimo morto-vivo de filme preto-e-branco, daqueles que se arrastam e trombam com as paredes. <br />
– E como se combate um zumbi?<br />
– Simples, você sabe usar uma dessas? – disse Dean oferecendo uma arma de choque para ela. – O choque irá derrubá-los sem matá-los e amanhã acordarão com uma tremenda dor de cabeça, mas vivos. E o efeito passa depois de um tempo sem o veneno. Agora beba isso doutora – disse passando um cantil para ela.<br />
– O que é isso? – perguntou cheirando o conteúdo e fazendo careta.<br />
– É o antídoto – respondeu Sam. Temos que tomar para não corrermos o risco de sermos contaminados. Mas gostaria de dizer que você não precisa tomar, que bastaria esperar no carro e acionar as autoridades se não voltarmos em uma hora. Deste modo ficaria segura e ajudaria mais do que se expondo para o Kripke. Entretanto, seu nome está na lista do It e ele não se esqueceu de você. Portanto é melhor ficar onde possamos protege-la – explicou Sam.<br />
– Agradeço que se importem com minha segurança, rapazes. Mas esse caso é meu também e não faz meu estilo deixar que terceiros resolvam meus problemas. – disse Ana tampando o nariz e engolindo um liquido que lembrava xarope para tosse misturado com urina. – Eca!<br />
– Não pergunte do que é feito – recomendou Dean.<br />
– Vamos? – convidou Sam engatilhando sua espingarda.<br />
– Um instante. – pediu Ana enquanto rasgava sua saia do tornozelo até o meio da coxa o que lhe valeu um assovio do Dean. – Pronto, agora podemos ir. – disse Ana de arma em punho.<br />
– Só faltou amarrar uma faixa na testa, doutora. – comentou Sam.<br />
– Eu adoro essa parte do trabalho, irmãzinho – disse Dean também engatilhando sua arma e sem tirar os olhos das coxas da promotora.<br />
Assim o trio entrou no presídio pela porta da frente que estava aberta e sem vigia. <br />
– Isso tá com cara de armadilha – comentou Ana seguindo-os pelo pátio escuro.<br />
– Deve ser porque é uma armadilha, mas não esquenta princesa. O Sam e eu tiramos isso de letra. É nossa marca registrada sair vivos de armadilhas – disse Dean sem convicção.<br />
Eles chegaram na entrada do pavilhão onde deveria estar trancado o Kripke e não viram nada suspeito pelo caminho, o que por si só era muito suspeito. <br />
– Sam, eu vou entrar e verificar o corredor. Você fica aqui na fachada com a doutora e me dá cobertura.<br />
– Ok – respondeu Sam.<br />
– E Sammy – disse Dean virando-se uma última vez.<br />
– O quê?<br />
– Comporte-se com a doutora, hein – disse piscando para os dois.<br />
– Não ligue para o meu irmão – disse Sam à moça agradecendo a escuridão por esconder sua face ruborizada. <br />
– Tudo bem – respondeu Ana achando graça no acanhamento dele. – Compreendo que deve ser complicado conhecer garotas com o tipo de vida que vocês levam. – disse se aproximando de Sam e não acreditando que estava flertando numa hora daquelas com um monstro em seu encalço.<br />
– O Dean discordaria – disse Sam entrando na brincadeira. Para ele nossa rotina nunca foi empecilho para conhecer mulheres. Ele faz o tipo canastrão e a mulherada não resiste a um cafajeste boa pinta. <br />
– Mas com você é diferente – arriscou Ana encostada em Sam.<br />
– Realmente. É que a última mulher que amei morreu por causa do que minha família faz.<br />
– Sinto por você – disse tocando no braço dele.<br />
– Era para ela ser uma advogada como você, aliás, eu também deveria ser. Mas o destino tinha outros planos para mim. – disse tocando-a também.<br />
Os dois estavam com os rostos colados quando um corpo caiu do lado deles espirrando vísceras. <br />
– Oh não! É o advogado do Kripke. Ele caiu? – perguntou Ana se afastando do corpo desconjuntado e tampando a boca com as mãos.<br />
– Eu diria que o Kripke dispensou os serviços dele – disse Sam abraçando a moça.<br />
Mas mal se recuperaram do susto e eis mais um. Dean saiu do prédio correndo e trombou com eles.<br />
– O que aconteceu aqu...? – ia dizendo ao ver o corpo do advogado e seu irmão abraçado com a doutora. – Deixa pra lá, corram que tem uma multidão de zumbis me seguindo!<br />
– Correr para onde? – perguntou Sam.<br />
– Precisamos de reforços. Vamos procurar o Singer. Ele não deve ter se deixado eliminar facilmente pelo Kripke.<br />
E os três correram para o pavilhão do Singer com uma centena de prisioneiros zumbis brotando de todos os cantos atrás deles.<br />
<br />
Cap. 6: “Não há descanso para os maus”<br />
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Uma Lua tímida despontava no seu céu enevoado iluminando uma cena inusitada. Três pessoas fugindo de zumbis vestidos com uniformes azul bebê. Kripke havia exagerado na quantidade de pó criando uma legião de soldados lerdos e babões, mas que quebrariam os ossos de seus inimigos se conseguissem encurrala-los. <br />
– Isso esta parecendo a Colina do Diabo quando os fantasmas dos pacientes do hospício atacam. – comentou Dean que abria caminho atropelando os zumbis como um zagueiro de futebol americano.<br />
Logo atrás vinha Sam de mãos dadas com Ana. Com a mão livre ele segurava sua espingarda de cano serrado e a moça sua arma de choque. Sam evitava atirar e quando fazia era na perna ou no braço dos zumbis. Já Ana não teve a oportunidade de usar sua arma em ninguém.<br />
Eles finalmente entraram no pavilhão onde ficava a cela do Singer. Encostaram a porta e derrubaram um armário na frente dela improvisando uma barricada. Punhos partiram a janelinha da porta, e braços foram introduzidos pelo vão agitando-se no ar como tentáculos a procura de algo para estrangular.<br />
– Eu vi em um mapa no prédio anterior que a cela fica no próximo corredor à direita – explicou Dean correndo. <br />
Quando dobraram no final do corredor toparam com mais uma cena hedionda. Preso as grades de sua cela estava o cadáver de Robert Singer. Ele trazia no rosto curvado uma expressão de intenso horror. O experiente caçador fora pego e esfolado vivo. A pele do pescoço ao umbigo jazia aos seus pés. A jovem promotora enfiou o rosto no peito de Sam para não ver aquilo. Ela já havia visto sangue suficiente para uma vida toda.<br />
– O que acharam da minha obra-prima? – perguntou alguém no interior da cela oculto nas sombras.<br />
– É o Kripke! – avisou Ana. – Façam parar de matar – pediu aos irmãos Winchester que já miravam no coração do feiticeiro.<br />
– Eu não faria isso se fosse vocês – preveniu Kripke sorridente.<br />
Os Winchester não lhe deram ouvidos, sabiam que a melhor maneira de lidar com feiticeiros era atirando primeiro e perguntando depois. Mas a munição disparada contra Kripke não chegou a tocá-lo. O devorador de almas havia se materializado na frente de seu mestre recebendo a carga de sal grosso no que seria seu peito. A criatura urrou e se desintegrou, voltando a surgir agora atrás dos irmãos que foram lançados contra as paredes do corredor. Os seus corpos estavam presos acima do chão sendo pressionados pelo It que apertava seus peitos com a sutileza de uma britadeira.<br />
– Solte eles ou vai se arrepender! – disse Ana ameaçando Kripke com sua arma de choque.<br />
– Calma doutora, não vou matá-los, não depressa – disse Kripke rindo com sadismo. – Eu quero ver se são durões como o Singer. Ele podia ter facilitado respirando o pó mágico, mas o infeliz usou a camisa umedecida na água da pia como máscara de gás. Ele era dos bons, mas não o bastante – ressaltou Kripke, mesmo assim resistiu por uma hora de tortura antes de me dar o nome dos seus amigos. Só então deixei que meu “bichinho” consumisse o espírito dele. Não sei se te explicaram, mas preciso do nome de meus oponentes para acrescentá-los a minha lista negra. – disse exibindo sua bíblia aberta com o nome “Sam” e “Dean” gravados em letras garrafais preenchendo uma página cada. <br />
– Por que está fazendo isso? – disse Ana a meio metro dele.<br />
– Porque posso, simples assim – respondeu Kripke sério. – Vou te contar um segredo doutora. Eu já fui um caçador como o Singer e seus amigos no “paredão”. Mas nas palavras de Nietzsche: “olhei por tanto tempo dentro do abismo que o abismo olhou para mim” e aqui estou. Fui esperto para escolher o lado que irá vencer a guerra entre o Bem e o Mal – declarou triunfante.<br />
– Ninguém sabe como essa guerra vai terminar, talvez nunca termine – disse Ana sofrendo pelos irmãos que gritavam de dor presos pelo It.<br />
– Olhe ao seu redor e não seja ingênua! A maldade impera em toda parte. O Mal já venceu e o “Bem” está agonizando na parede – retrucou Kripke. <br />
– Não é verdade! O Mal só impera onde a bondade não se impõe. Eu sou testemunha disso, vejo todos os dias pessoas corruptas no tribunal, mas também vejo pessoas lutando por justiça. E não vou ficar parada vendo-o maltratar meus amigos – disse Ana avançando com sua arma faiscando.<br />
Infelizmente Kripke como todo caçador tinha treinamento militar e para ele foi extremamente fácil desarmar Ana e lança-la contra a parede.<br />
– Adoro uma potranca arredia – disse Kripke torcendo o braço dela. – E sabe de uma coisa? Eu não preciso do It para cuidar de você. E pra ser franco, será um prazer “cuidar” pessoalmente de você – disse maliciosamente.<br />
Nas paredes os Winchester viam tudo sem poder intervir. Não que tivessem consciência do que acontecia fora de seus corpos, pois estavam concentrados em suportar a pressão esmagadora infligida pelo It em seus peitos. Eles se sentiam como se estivessem sofrendo uma cirurgia sem anestesia por um açougueiro ensandecido.<br />
– Você não vai escapar impune, maldito! Nós temos o punhal que você usou para matar as crianças – disse Ana sentindo o aperto afrouxar.<br />
– Se refere a este punhal? – perguntou Kripke soltando-a para mostrar sua lâmina. – E não faça cara de surpresa, foi meu advogado que pegou para mim. Como acha que esfolei o Singer? E chega dessa besteira de “não escapará impune”, isso não é filme, é a vida real e na vida real a impunidade é a regra. Levei seis anos para gerar meu It, mas agora serei um deus entre os homens, qualquer um que se opor a mim terá sua alma dilacerada pelo meu monstrinho – disse Kripke erguendo o punhal. –A gora se não se importa irei tirar um pedaço seu para experimentar; estou curioso para saber se o sabor da sua carne é forte como o da sua personalidade. E sim, foi desse jeito que me livrei dos restos das crianças. Não pensava que eu iria desperdiçá-las com os jacarés, não é?<br />
Foi a gota d´agua. Ana superou o medo e o asco que sentia e acertou um chute com seu sapato bico fino entre as pernas de seu agressor. O homem caiu de costas e ficou gemendo e praguejando em posição fetal. O It ao ver seu mestre no chão largou os Winchester e se projetou em cima da moça, mas era tarde para ele. Quando o monstro a atacou ela já havia começado a rasgar a bíblia de Kripke que sangrava em suas mãos. <br />
Os Winchester despencaram no piso com um tombo feio e sem forças para se levantarem viram do chão a criatura ser destruída. O It perdeu consistência e derreteu formando uma gosma negra que evaporou impregnando o corredor com cheiro de carne podre. <br />
Ana chorava sentada no chão ainda picando mecanicamente as folhas com a lista negra. Os Winchester juntaram forças e se arrastaram até ela abraçando-a. <br />
– Bom trabalho – gemeu Dean. – Não teríamos feito melhor.<br />
– Acho que você aleijou o “Bruxo de Nova Orleans” – disse Sam apontando para o Kripke que se retorcia ali perto. – Lembre-me de nunca irritá-la. <br />
– Mas e agora o que farei? Não posso falar dessas coisas no tribunal sem parecer louca – disse Ana se recuperando. – A não ser... é isso! – pensou alto.<br />
– A não ser o quê? – perguntou Sam.<br />
– Independente do que ela está pensando, Sam, eu aposto que dará certo. A doutora não deu um palpite errado hoje – disse Dean.<br />
Depois de algemarem o Kripke e trancá-lo na cela do Singer foram a centro de vigilância para ver o que as câmeras haviam filmado. Eles selecionaram a filmagem do Kripke torturando Singer e a confissão feita enquanto atacava a promotora. As demais fitas foram apagadas para que não fossem parar na TV. Os Winchester acreditavam que havia “verdades” para as quais a população comum não estava preparada para lidar. <br />
– O que houve com os zumbis, rapazes?– indagou Ana.<br />
– Eu tenho uma teoria um tanto louca, mas como zumbis mantêm uma conexão mental com seu mestre, e bem, você deve ter dado curto circuito nessa conexão com aquele chute. Os zumbis devem estar por ai se escondendo de você – disse Dean.<br />
– Aquele desgraçado merecia mais – disse Ana nervosa.<br />
– E com essas fitas você vai garantir que Kripke terá toda a punição que um canalha como ele merece – disse Sam.<br />
Ana sorriu satisfeita como há muito não sorria encantando ainda mais os irmãos que já eram seus fãs. <br />
***<br />
Alguns dias depois no chuveiro da mesma penitenciária. <br />
Kripke havia acabado de desligar o chuveiro quando ouviu passos atrás de si, e ao se virar viu treze homens surgirem através da cortina de vapor. Eles estavam com toalhas enroladas na cintura e eram grandes, feios e hostis.<br />
– Tudo bem, comedor de criancinhas? – perguntou o maior dos homens desferindo um soco na cara do Bruxo de Nova Orleans.<br />
– Não! De novo não! – suplicou do chão ao ver as toalhas caírem.<br />
Epílogo<br />
<br />
Sam e Dean aguardavam a promotora para saberem como terminou o processo. Haviam combinado de se encontrarem na placa de boas-vindas na entrada de Nova Orleans. Dali partiriam para sua nova caçada mas antes era preciso confirmar se o caso estava concluído. <br />
Para o espanto dos irmãos a promotora chegou montada em uma moto kawasaki.<br />
– Olá, rapazes! – disse saltando da moto para abraçá-los. – Adivinhem! O júri julgou Kripke culpado de todas as acusações! Ele pegou perpetua! – disse Ana saltitante.<br />
– Parabéns! Você é o cara! Digo, a mulher! – brincou Dean.<br />
– O Kripke começou a perder quando se meteu com você – disse Sam. – Mas gostaria de ter visto a cara do Kripke quando recebeu a sentença.<br />
– Se te serve de consolo ninguém viu. Ele não pode comparecer a sessão final. O Kripke está na enfermaria da prisão, parece que tem feito muitas “amizades” entre os prisioneiros e anda ocupado demais sendo “cuidado” pelos novos amigos, se é que me entendem – disse Ana impiedosa. <br />
– Ele está colhendo o que plantou – disse Sam.<br />
– Mas esqueçamos o Kripke e vamos sair os três para comemorar a primeira grande vitória da minha carreira. Melhor dizendo: nossa grande vitória – corrigiu.<br />
– Valeu pelo crédito princesa, mas o mérito é todo seu. E acredite eu adoraria sair contigo, mas a polícia de Nova Orleans está nos procurando por termos seqüestrado uma promotorzinha. – disse Dean sorrindo e também estamos saindo para uma nova caçada, infelizmente é sério – disse Dean abatido.<br />
– E não há nada que possa fazer para que fiquem? – perguntou decepcionada.<br />
– Lamentamos Ana – disse Sam. – Foi bom tê-la conhecido.<br />
Sam a abraçou para se despedir e Ana aproveitou para lhe dar um longo beijo de despedida que o deixou mudo. Eles se separaram evitando se olhar. Dean recebeu apenas um abraço e ficou contrariado.<br />
– Até um dia desses, rapazes! – gritou Ana partindo em sua mota sem demora para que os rapazes não percebessem como era duro para ela dizer adeus.<br />
– O que houve aqui? – perguntou Dean indignado.<br />
– Sei lá, vai ver que tem mulheres que são boas demais para você – zombou Sam. – Esquece isso, para onde agora? – disse entrando no Impala enquanto saboreava a lembrança do beijo.<br />
– Tem uma múmia dando trabalho no museu de história de Nova <br />
York – disse Sam passando uma edição amassada do Times para o irmão.<br />
– Dean – disse Sam pensativo.<br />
– Sim? <br />
– Essa Ana daria uma bela caçadora de demônios, concorda?<br />
–Ela é uma caçadora de demônios, Sam. Deus a ajude porque na profissão dela terá que enfrentar monstros piores que os nossos. <br />
Sam refletiu a respeito enquanto Dean guiava o Impala para fora de Nova Orlenas por uma estrada deserta. E por um instante eles tiveram a impressão de ver treze crianças de branco acenando sorridentes ao lado de três adultos na beira da estrada. No instante seguinte haviam desaparecido. Os espíritos estavam em um lugar melhor agora, graças aos Winchester e a uma advogada destemida. <br />
FIMMLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-16048469091857411902009-12-21T09:55:00.002-04:002009-12-21T09:55:58.654-04:00O melhor amigo do homemColosso aprendeu que na vida não há lugar para os fracos da pior forma quando ainda era um filhote. As circunstâncias o ensinaram a brigar antes de abrir os olhos, lutando por um peito para não morrer de fome, depois pelos ossos e pela ração, então começou a lutar pelo espaço, pelo privilégio de cruzar e por fim terminou lutando pelo mero prazer de lutar. Ele havia se tornado um cão de briga, o melhor da cidade.<br />
Já os irmãos de Colosso eram cães de rua, vira-latas comedores de restos, ao contrário dele que vivia cercado de cuidados. Colosso era um guerreiro, um bravo guerreiro. Uma noite por semana a fazenda para cães de briga em que vivia virava o epicentro das disputas regionais de rinha. Ele era posto numa pequena arena cercada por placas de concreto junto com outro cão, às vezes até maior que ele. Há dois anos que apenas ele saia vivo da arena canina. E sua fama de matador aumentava a cada mordida desferida. Nos bastidores diziam que não havia oponentes para o Colosso, apenas vitimas. <br />
Colosso era um animal robusto, mas seu corpo coberto por cicatrizes era repulsivo. E apesar de receber muitos elogios nos dias de luta nos outros era tratado com frieza, eventualmente com crueldade. Cães de briga não podem ser tratados com carinho, o afeto os amolece, os tornam fracos e diminuem o lucro de seus donos. Para lucrar é necessário criar um campeão nutrindo o ódio e a sede por sangue no animal. Os treinadores do Colosso sabiam muito bem disso e caprichavam para que o amor jamais adentrasse na jaula dele. <br />
Porém, senão havia um oponente a altura de Colosso dentro da aena, o mesmo não podia se dizer do lado de fora. Em sua jaula a morte o aguardava na forma do tempo que diariamente roubava suas energias. Com os homens o Tempo deve ser paciente e na maior parte das vezes somente após setenta anos golpeando-o consegue nocauteá-lo, mas com um cão é mais simples, mal se começa a persegui-los e já tombam. E com Colosso não seria diferente, e apesar de continuar invicto, as apostas contra ele aumentavam. Nem mesmo seu dono acreditava que pudesse durar muito tempo e resolveu se prevenir.<br />
Certa amanhã o treinador de Colossos trouxe para o canil um novo integrante para a alcatéia do patrão. Era um cão quase tão grande quanto Colosso, mas algo nele não inspirava respeito aos demais cães, talvez fosse a ausência de cicatrizes em seu corpo ou seu olhar amistoso que entre os cães significava submissão. <br />
O novato foi preso a uma corrente nos fundos de um pátio pavimentado em que a alcatéia se exercitava. Colosso estava solto com os outros cães e reconheceu logo o ritual. Era daquela forma que os cães novos eram apresentados a rotina do lugar. O treinador entregava o infeliz de presente para a alcatéia e ficava de longe com seus ajudantes prontos para intervir se preciso. Era um teste, o cão seria atacado e se não reagisse seria poupado pelos seus, mas não pelo treinador que o julgaria impróprio para a rinha e o sacrificaria. Agora se reagisse levaria uma surra coletiva, e se o treinador e seus ajudantes não o socorressem a tempo era certo que morreria; ainda mais com o Colosso entre os atacantes. Mas se sobrevivesse seria transformado também em um assassino – de qualquer forma haveria sangue em seu futuro.<br />
Colosso encarava o estranho do outro lado do pátio e este o encarava de volta sem demonstrar temor algum. A cachorrada aguardou que o Colosso iniciasse o ataque, mas cansados de esperar decidiram avançar. Eles cercaram o novato e começaram a rosnar e a exibir seus dentes, mas o novato continuava entretido em seu duelo de olhares com o Colosso ignorando as presas que o rondavam. Então sem aviso um dos cães o atacou por trás seguido da alcatéia inteira. Apenas o Colosso não se envolveu na cachorragem. Ele preferiu observar de longe admirado o novato saltar de lado não só escapando do bote do primeiro atacante como também o enroscando na corrente, depois escolheu a garganta do atacante maior e cravou seus dentes nela. Ao mesmo tempo uma centena de dentes espetaram suas costas e pernas. Colosso não podia mais vê-lo em meio aquela confusão.<br />
O treinador espantou os cães com um jato d´agua de alta pressão tingindo o pátio de rosa. E onde a pouco havia um amontoado de cães se via apenas o novato encharcado e ofegante com um cadáver em seus pés. Ele continuava a encarar o Colosso que finalmente desviou seu olhar abalado e voltou para sua jaula. O novato havia passado no teste, mas o treinador não era o único que ele havia conquistado.<br />
Enquanto o prestigio do Colosso caia, um novo campeão surgia e o nome gravado em sua cólera era Rodes. Ele tinha um nome diferente, mas foi substituído pelo treinador como uma espécie de provocação ao antigo rei do canil. No entanto o Colosso não se incomodava com as sucessivas e esmagadoras vitórias de seu vizinho de jaula, por alguma razão que não compreendia não conseguia odiá-lo e isto sim o incomodava.<br />
Colosso andava depressivo, não latia, comia e bebia pouco e dormia muito mal. Havia perdido o brilho e um bocado de peso o que era extremamente ruim para um lutador peso pesado. Na luta seguinte Colosso descobriu como alguns quilos de massa muscular podem fazer falta. O seu adversário, um cão bem mais jovem do que ele, aproveitou seu estado debilitado para massacrá-lo. Quase não conseguiram tira-lo da rinha vivo. Apesar de ter lutado bravamente não conseguiu evitar a primeira surra de sua vida. O seu treinador o jogou na jaula sem sequer lavar suas feridas com salmoura. <br />
O velho herói curtia a derrota encolhido em um canto, mantinha a cabeça oculta entre as patas humilhado. Seus companheiros de canil tinham se convertido em um bando de hienas que zombavam de sua queda. Ele sabia que ao perder o respeito entre os cães havia perdido o direito a sobrevivência e de agora em diante teria que lutar como nunca. Porém, o mais grave era ter decepcionado seu dono, falta grave que geralmente era punida com pauladas ou um tiro fulminante no crânio. <br />
À noite, quando apenas os pesadelos provocavam um grunhido ou outro no canil algo de inusitado ocorreu ao Colosso; através da grade em que estava encostado alguém lambia suas feridas solidariamente. Ele abriu um dos olhos confuso achando que fosse um sonho ficando ainda mais confuso ao perceber que se tratava de Rodes. O novato acariciava na medida do possível os ferimentos no lombo de Colosso. Por um instante os dois se entreolharam perplexos a espera de uma reação agressiva um do outro, no instante seguinte a tensão se dissipou e Rodes voltou a lamber o amigo enquanto este se ajeitava como podia para facilitar as lambidas pelos vãos da grade. Naquela noite, pela primeira vez em sua vida, Colosso teve sonhos bons.<br />
Havia algo de novo na fazenda de cães e não demorou ao treinador e o dono perceberem. Seus campeões não queriam mais lutar e não se importavam mais em comandar a matilha. Colosso e Rodes viviam se cheirando e lambendo através das grades, às vezes em estado de frenesi. E quando eram soltos para se exercitar passavam o tempo disponível brincando um com o outro como filhotes. Este comportamento estava irritando os humanos e incomodando os outros cães. A amizade de Colosso e Rodes podia despertar o que havia de melhor neles, mas certamente tinha o efeito contrário com o público. <br />
Pouco tempo após Colosso e Rodes se tornarem próximos o destino os separou. A traumática separação ocorreu em uma manhã em que por descuido de um ajudante do treinador a porta do canil ficou destrancada e Rodes convenceu Colosso a dar um passeio pela fazenda. Colosso não podia negar um pedido de seu parceiro e o acompanhou pelos campos além das grades do canil. Nenhum outro cão os acompanharam como se farejassem perigo; Colosso também sentia o cheiro de perigo, mas mesmo temeroso seguiu Rodes saltitante por meio de um pomar florido até colinas verdejantes salpicadas de vaquinhas. Ele sabia que a felicidade compartilhada com Rodes seria cobrada em algum momento, mas isso era problema para ser resolvido depois, agora queria apenas caçar borboletas pela grama alta com seu parceiro.<br />
Cerca de uma hora mais tarde vários homens surgiram na orla do pomar chamando pelos cães fujões. Colosso e Rodes saltaram assustados de trás de uma moita enfeitada de florzinhas brancas, eles estavam ofegantes de tanto brincar, mas seus corações disparam era de medo da punição que receberiam quando retornassem ao canil.<br />
Colosso virou em direção ao pomar e foi avistado pelos homens que invocaram os dois com palavrões. Ele ia obedecer aos chamados, mesmo sabendo que apanharia, mas de repente Rodes o deteve e o tentou convencer a fugir dali. Colosso olhou para o horizonte, a algumas centenas de metros havia um bosque onde a liberdade os aguardava, mas Colosso não sabia o que era a liberdade e mesmo a desejando ele a temia. Infelizmente bastaram segundos de sua indecisão para que um dos homens o alcança-se e o prendesse com uma coleira. Rodes podia ter fugido, mas preferiu se entregar e compartilhar do destino de seu amigo.<br />
A surra foi exemplar. Quando a chuva de pauladas cessou Colosso pode ver que estava novamente só em sua jaula. Ficou dias trancado sem notícias de Rodes a espera de a qualquer momento aparecessem com uma espingarda para sacrificá-lo. Mas o tempo passou, suas feridas cicatrizaram, chegou a noite de uma nova rinha e nem sinal do Rodes. Colosso não tinha dúvidas, seu amigo fora sacrificado, fazia sentido, os problemas no canil haviam chegado com ele e provavelmente partiriam com ele. Uma dor tremenda tomou conta de Colosso e em seguida virou ódio, e finalmente desejo de matar.<br />
Colosso foi levado para a rinha naquela mesma noite e destroçou seu oponente apesar de ser maior e mais jovem que ele. E assim continuou semana após semana, mês após mês. Colosso era novamente o campeão regional, mas as coisas não eram mais as mesmas, nunca mais seriam. Ele retornará a rinha muito mais selvagem e cruel. Colosso não só matava seus oponentes como os devorava ali mesmo se não fosse impedido. No canil vivia atacando seus colegas e ferindo-os gravemente. Ele atacava inclusive as fêmeas que eram apresentadas para cruzar. Nem por sexo ele se interessava mais, queria apenas morder e morder para expressar sua dor na carne alheia. O rancor havia transformado-o em um monstro. O treinador e o seu dono nunca foram tão felizes.<br />
Contudo a grande luta para a qual Colosso havia treinado inconscientemente desde o ninho ainda estava por vir. Na noite anterior a última vez que Colosso entraria em uma rinha ele sonhou com Rodes. Seu parceiro das boas e más horas parecia belo como nunca, pelos vistosos e olhos brilhantes, correndo por uma colina coberta de nuvens branquinhas. Era o paraíso dos cães para onde Colosso iria em breve se reencontrar com Rodes, assim acreditava. Lágrimas rebeldes e gemidos doidos escapavam enquanto sonhava.<br />
Na rinha daquela noite havia um público maior e mais entusiasmado, isto porque não se tratava de uma luta comum, mas o embate entre o campeão regional Colosso e o Triturador, talento emergente que vinha desafiá-lo. O Triturador surgiu a quase um ano e colecionava vitórias por onde passava, diziam até que era prole do próprio Colosso,o que deixava a luta mais interessante. Mas quando Colosso entrou no ringue ansioso para engolir vivo seu oponente, independente de que fosse seu filho ou pai, recebeu um golpe que o atordoou mais que qualquer paulada que tivesse tomado na vida. Diante dele, coberto por cicatrizes, completamente retalhado e com um olho vazado estava Rodes espumando pronto para avançar raivoso contra ele assim que seu treinador o soltasse. <br />
Colosso ficou petrificado e não viu quando Rodes saltou sobre ele. O público jamais testemunhara uma surra como aquela. Rodes arrancava nacos de carne pulsante de Colosso e seus dentes trincavam os ossos do amigo sem dó. Colosso não reagia, apenas se esquivava canhestramente. Ele suplicava na língua dos cães que o amigo parasse, que acordasse do transe ao qual provavelmente fora induzido por meio de privações e doses generosas de agressão física. No entanto, vendo que o amigo o destroçaria com mais duas mordidas resolveu mudar de estratégia e com um golpe de mestre derrubou seu adversário já exausto de lutar e sem mais fôlego algum, prendeu-o no chão pressionando-o sua garganta com uma mordida poderosa. Colosso era maior, era mais pesado e mesmo arrebentado ainda era o cão de rinha número 1 de todos os tempos. <br />
Rodes esperou que seu oponente rasga-se sua garganta ou o sufoca-se, ao invés disso o que sentiu foi uma lambida. Ele se levanta receoso e se esforçou para compreender o que esta acontecendo enquanto os homens ao redor da rinha deixam seus cigarros caírem de suas bocas. O silêncio é total no galpão onde se realiza a luta. Os cães estão se cheirando e aos poucos seus músculos vão relaxando e uma fagulha de reconhecimento recíproco reflete nos olhos de Rodes. Agora os cães se lambem freneticamente e rolam pela rinha. Donos, treinadores e apostadores observavam a cena chocados, mas em questão de segundos o espanto vira constrangimento e esta virá intolerância. Por fim os homens viram animais perante cães se comportando de forma tão humana.<br />
O treinador de Colosso vai buscar uma espingarda para acabar com o que ele chama de “pouca vergonha” de “humilhação” enquanto os apostadores se dividem em zombar dos donos dos cães e reclamar do desfecho da luta. Rodes percebe que Colosso está na mira do treinador e sabe que seu companheiro não tem condições de fugir, então salta sobre a divisória que separa o público da pequena arena e derruba o treinador. O cão abre um rio de sangue na garganta do homem e a espingarda dispara atingindo alguém. As pessoas correm sem rumo trombando e pisoteando uns aos outros. Outro alguém liga para a polícia e o inferno está decretado. <br />
Rodes e Colosso aproveitam a balburdia para fugir entre as pernas e distribuir algumas mordidas em canelas ao acaso. Eles atravessam o pomar, cruzam o pasto das vacas e adentram no bosque. E protegidos pelas raízes de uma árvore e acomodados confortavelmente em um colchão de folhas voltam a se lamber e a rolar felizes como filhotes bem amados. <br />
Dizem que muitos anos depois ainda era possível ver um cão caolho e outro maior e manco caçando borboletas na orla do bosque ou uivando juntos para a Lua. E por incrível que pareça eles nunca mais brigaram. O resto é fofoca.<br />
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MLMAnjosMLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-74562918403785659992009-11-30T08:19:00.000-04:002009-11-30T08:19:08.618-04:00Em breve..."O melhor amigo do homem" - um conto sobre um amor improvável que desafia as convenções. Aguarde.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-30613163373354762602009-09-26T13:14:00.001-03:002009-09-26T13:16:49.697-03:00Comentário:Quanto dura o amor?Eu me sinto tentado a invocar neste momento uma série de chavões críticos como "arrebatador,visceral e esteticamente impecável" para descrever o filme "Quanto dura o amor?", mas esta modesta obra-prima do cinema nacional não merece que lhe seja imposto o lugar-comum, do qual soube driblar muito bem. Porém, não irei me ater ao óbvio e não comentarei a originalidade e a sensibilidade explicita na abordagem a temas delicados como o Amor e suas pecularidades. Prefiro prestar homenagem a edição precisa e certeira, destaque para a introdução e para as cenas de amor que são simplesmente apaixonantes. Devo também reconhecer o desafio interpretativo dos atores visto que se trata de uma filmagem em que predomina o plano fechado e às vezes a câmera se aproxima tanto que se pode enxergar a alma dos atores, digo das personagens, pois além de vida as personagens também ganham alma,repare e verá. Uma pena que que no debate que seguiu a projeção não terem citado a "pedra angular" da fita, me refiro ao proprio condomínio e a Avenida Paulista que era um personagem a mais e não apenas um cenário,ao contrário, foi captado com genialidade e explorada ao máximo o potêncial dramático que S.Paulo tinha a oferecer.A fotografia é um espetáculo a parte (este clichê me escapou), a luz certa na ocasião certa, as cores dançam um tango com a trilha sonora daquelas vistas somente em filmes hollydianos. E por fim, o desfecho:bravo,honesto e inquietante -poesia visual que nos faz sonhar. Sinceramente, não sei quanto dura o Amor, mas posso afirmar que a contribuição que este filme deu a Sétima Arte é inestimável e durará enquanto houver seres sensíveis para aprecia-lo. Talvez, esta seja a tembém a resposta para quanto dura o amor.Provavelmente o Amor dura enquanto formos capazes de reconher algo tão belo e valioso e estivermos dispostos a amar.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-19010580903488295272009-09-25T09:46:00.000-03:002009-09-25T09:46:48.692-03:00microconto: O bilhete premiadoAquele bilhete de loteria em suas mãos valia a quantia exata da qual necessitava para salvar sua vida. Ele tremeu só de imaginar no que poderia comprar com aquele dinheiro:um carro, uma casa, talvez até um iate. Não! Primeiro tinha que honrar sua divida com a máfia, à noite o prazo terminava e no dia seguinte amanheceria com os peixes no rio. Todos os seus problemas seriam solucionados com aquele pedacinho de papel.Por isso, que foi com muito pesar que efetuou o pagamento para o homem que havia apresentado o bilhete. Depois fechou seu guichê para ir chorar no banheiro.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-73552259625265963532009-09-05T09:13:00.001-03:002009-09-05T09:15:53.092-03:00Conto: O dia em que Papai morreu"Nada penetra mais fundo e envenena que uma palavra mal dita”.<br />
Hermes Locke<br />
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Descuido matou Papai. Culpa dele não podar a língua. Era peixe a ser fisgado, sabido de todos quanto. Da feita, de oito completo, rondava os nove, meninote de tudo; porquerinha minha, no linguajar de mãe. Era de manhã, Sol sorrindo feito jumento. Eu e minha laia cumpria pena escolar. Não guardei o ano, lembro da lição, porém. Era artes, matéria exata pra gente arteira, de nossa espécie não existe mais; o mestre deu cabo a golpes de régua, feliz que só. E enquanto eu pelejava na carteira nos emendos e remendos de cola e papel, na roça papai labutava terra e pó banhando-se em suor. A cena era de ser bem essa. <br />
Não tenho muito que dizer. Era dia seleto na escola, ironia, sexta de antevéspera dos pais. O mestre falou do valor do genitor para o bom filho, todos eram e juravam ser; disputava-se quem amava e respeitava mais seu velho, orgulhos infantis. No sítio, certeza que Papai pensava não em mim, era no meu pão, na minha roupa, no meu caderno que a mente e corpo de Papai se ocupava. Sua cabeça era da família, o mestre explicou. Papai penhorava seu coração pelos filhos e esposa, a gente agradecia. Papai era Homem, era Super. Que gostosura era ser filho de meu Papai!<br />
Papai era rude, eu era rústico, combinávamos. Da ninhada só eu escapei das pancadas, predileto talvez. Mamãe amava todos com uma só medida. Papai tinha seu eleito, quanta briga. Meus irmãos desaluviavam em mim ciúme e frustração, depois Papai me vingava e a desgraceira espichava. Era tanto amor e ódio que descabia em casa nossa, choupana rasa a tombar de lado. Terminaram por demandar a mando do velho. Mamãe se debulha ainda hoje pelo nunca mais dos rebentos que pipocaram sertão a fora. Sina de mãe.<br />
Tinha respeito por meu pai inté demais. Um mar sem fim de admiração. Beleza de se vê só. Inda hoje tenho viva as nesgas daquele amor, fagulhas guardadas debaixo das feridas. <br />
Lembro da aula acabada, da jardineira me levando pro sítio, eu mais a molecada da rural numa algazarra. A gente ia feliz, satisfeitos de nossas feituras. Eu mesmo namorava o cartão que mais tarde passaria a meu velho. Pudesse dava algo de brilho, a ocasião pedia, mas presente melhor eu ficaria devendo. Vontade de agradar não faltava.<br />
Na altura da porteira desci da condução e desembestei pelo corredor do cafezal. Naquele tempo se plantava café e muito. Longe vi pai e mãe, ele na derriça, ela na peneira. Tinha camaradas dando força também, mas deles nem, ficou meu pai e minha mãe na memória. Ainda cheiram o doce dos grãos maduros. <br />
Eu encostei no velho, pedi atenção e ele o quê? Pro senhor pai, oferecendo meu coração dobrado com um “Feliz dia dos pais” gravado com canetinha. Ele pegou, examinou atento, procurava não sei o quê, de certo não encontrou. Sei que gesto e palavras seguintes não foram pensados, sei que o homem devia de estar mordido. E sei que nada disso era desculpa. “Toma, quando for grande e trabalhar volta com um maço de cédula, único papel que me interessa” me disse devolvendo o cartão e retornando a labuta. Fiquei plantado junto aos demais pés de café, um nada.<br />
Mamãe tentou concertar, pediu o cartão pra si, elogiou, fez cafuné. A intenção foi boa e inútil, não podia salvar papai. O meu velho morreu ali. Ele se matou, deixando no lugar um senhor com quem venho me enfrentando desde então. O sujeito nunca atreveu por a mão em mim, ele sabe que sou coisa ruim e tenho a quem puxar. Ele conheceu meu finado pai, que deus o tenha.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-17725748383395631382009-09-05T09:12:00.001-03:002009-09-05T09:16:19.576-03:00Conto: Uma fábula kafkaniana“Ser grande é ser incompreendido”. <br />
Oscar Wilde<br />
Sombras haviam lhe arrancado de sua cama de madrugada e o arrastado para o tribunal. O tempo era de terror e não se espantava com os métodos dos opressores para calar vozes como a sua; o que o surpreendeu foi terem lhe concedido um julgamento. No tribunal o palco estava armado para o espetáculo.<br />
O homem foi acorrentado na cadeira do réu e teve certeza do papel que exerceria naquela noite. O júri estava em seu lugar, o guarda, o promotor e o juiz. Havia até um escrivão registrando cada bocejo feito no recinto – que não eram poucos –, faltava apenas o advogado de defesa.<br />
Logo foi esclarecido que permitiriam ao réu se defender pessoalmente, o que de fato o agradou. As coisas não pareciam tão ruins assim afinal. Estava errado. <br />
O julgamento começou com a descrição do caso e do acusado. O júri foi informado que se tratava do julgamento de Franz Kafka exímio, porém, soturno escritor que assombrava a língua alemã com suas obras secretas. E por sua vez, Kafka soube qual fora seu crime. Era acusado de bruxaria e homicídio culposo. Segundo o promotor o réu havia transformado durante o sono um pobre e infeliz caixeiro viajante chamado Gregor Sanches em um inseto rastejante; e que por causa disso foi morto a vassouradas por uma empregada. Sem falar na família da vitima internada em um sanatório gerando gastos aos cofres públicos por culpa de um monstro maior chamado Franz Kafka. O promotor cuspia, não, escarrava sempre que pronunciava o nome do réu causando asco no júri que não conseguia si quer fitar o réu tamanha repulsa.<br />
E para provar que suas acusações eram fundamentadas o promotor mandou trazerem o cadáver de Gregor Sanches. O próprio Kafka não pode deixar de se horrorizar com a criatura esmagada e aos pedaços, oferecida à platéia. Era uma espécie de aberração infernal. O cruzamento mal sucedido entre homem e pesadelo.<br />
O mais estranho era que Kafka reconhecia a criatura. Sim, se lembrava dela, era uma de suas má-criações. Ela não existia, ou não devia. Mas as estranhezas não haviam terminado. Por ordem do promotor o júri digeriu as provas do crime devorando cada perna e antena de Gregor Sanches. Kafka concluiu que estava sendo julgado por loucos ou era ele que enlouquecera. O que era bem possível. <br />
O réu teve a oportunidade de se defender e fez o melhor em tais circunstâncias. Ele se esforçou para despertar o bom senso de seus ouvintes, para provar que não podia ferir ninguém com palavras, mas neste ponto começou a duvidar de si mesmo. Tinha que admitir que seus textos não eram inofensivos, e por isso mesmo os guardava em uma gaveta trancada e não estava certo que algum dia os publicaria. E quando percebeu que de qualquer forma seria inútil argumentar parou e o júri acordou, pois haviam dormido durante toda a defesa. <br />
O Juiz também estava exausto e entediado e decidiu acabar logo. Perguntou ao júri qual era o veredicto. Inocente! Gritaram e foram embora para suas casas. E o juiz martelou a decisão. Absolvido de todas as acusações e livre para todo o sempre. E o promotor disse amém, aleluia! E os restantes saíram para comemorar. Na cadeira, acorrentado ficou o réu sem entender nada, afogado em um misto de alívio e confusão.<br />
O carrasco entrou, libertou o prisioneiro e o levou para o pátio onde uma forca esperava por ele. E enquanto Kafka estrebuchava na corda perguntava ao seu algoz:<br />
“Mas por quê? Por quê?”<br />
E o carrasco respondia:<br />
“Você sabe, você sabe”.<br />
E para Kafka não houve moral alguma a ser aprendida, apenas a certeza de que estamos todos condenados a permanecer na forca até que faça sentido.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-5437620804717044402009-09-05T09:11:00.001-03:002009-09-05T09:17:47.711-03:00Crônica: Reflexões Sobre um Espelho“A arte tem necessidade de solidão, ou de miséria, ou de paixão. É uma flor das rochas, que deseja vento áspero e terreno rude.”<br />
Dumas Filho<br />
“Talvez não possa viver de sonhos, mas posso tentar.”<br />
Hermes Locke<br />
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Permitam-me que lhes conte a respeito de um jovem que conheço muito bem. Eu me lembro de quando ele tinha dez anos e leu seu primeiro livro, não que fosse realmente o primeiro que pões os olhos, de certo houve outros sendo que era um leitor precoce, mas não tenho dúvidas de que “Vice-versa” representou o ingresso dele no universo literário. O título em questão era uma coletânea de adaptações infanto-juvenis de clássicos da literatura universal acompanhada de um resumo do texto original; ali teve seu primeiro contato com “Fausto” na pele de um menino que faz um trato com o vírus do sarampo para não ir à escola. Além de “O Banquete” de Platão, “Dom Quixote” e outros títulos famosos. Foi amor à primeira leitura. <br />
Nunca me esquecerei de como ele sugava os livros se embriagando com a seiva deles. Lembro de como voltou à biblioteca e pediu à bibliotecária que o deixasse tomar emprestados os livros grossos, não que esnobasse os finos e mais infantis, mas já os tinha lido todos. E naquele dia foi para casa saborear “Caçadas de Pedrinho”. Seis meses depois havia terminado a coleção do Sítio do Pica-pau Amarelo, mais seis meses “Cidades Mortas” e “A negrinha” faziam parte de seu repertório. Os livros de Monteiro Lobato deram inicio a uma existência dedicada à leitura. <br />
Porém, não foi apenas o desejo de ler que despertou no garoto, ele também passou a sentir uma tremenda necessidade de escrever. Infelizmente, a gramática dele era péssima e para piorar demonstrava sofrer de uma leve dislexia. Os seus pais não apoiavam que escrevesse, parecia coisa de vagabundo, artifício de gente preguiçosa que não quer trabalhar de verdade. <br />
Mas em certa ocasião, na quinta ou sexta série, uma professora de português chamada Gisele, ao invés de apontar os seus deslizes gramaticais, o chamou para mais perto e lhe disse: “ Você já pensou em ser escritor? Talvez, histórias fantásticas e livros para crianças.” O garoto sorriu e disse que a idéia o agradava, mentira! A possibilidade de se tornar um escritor o extasiava. Não sei se a Prof.a Gisele sabia mas naquele momento ela plantou uma sementinha de ouro em seu aluno.<br />
Vida de escritor não é fácil, principalmente porque alguém inventou que escritor bom é escritor morto, não que seja lei, mas é tradição entregar o louro aos defuntos. Mesmo os que alcançam o reconhecimento enquanto caminham sobre a terra só atingirão a glória quando estiverem por debaixo da terra. Mas não era o Sol que o garoto buscava, somente um pouco de luz. Ele sentia que poderia dar bons frutos se encontrasse em meio à floresta uma brecha pela qual pudesse crescer. Ele tinha algo a dizer, aprenderia a dizê-lo com paixão e estava convicto que se escrevesse com sinceridade e carinho não lhe faltariam leitores. <br />
A necessidade de se comunicar é inerente ao ser humano, mas enquanto a maioria se contenta com os níveis mais imediatos da comunicação, aqueles que aspiram à escrita são obrigados a explorar ao máximo o potencial da linguagem verbal, e muitas vezes, todas as matrizes da linguagem, tanto humana quanto da natureza. Pois um artista completo dialoga com o Universo. O garoto não perdeu tempo e não desenvolveu apenas técnica com o passar dos anos, mas também uma corcunda curvando-se sobre cadernos e mais tarde computadores e sob o peso dos livros em sua mochila. <br />
Ele não era mais um menino, cresceu e entrou na faculdade na fé de que estudar literatura faria dele um escritor. Passaram-se sete anos, dos quais investiu seis anos e meio na criação de um romance que narrarei a seguir.<br />
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“Esta não é uma bela história, não como as que eu costumava ler quando criança. Mas se me derem à oportunidade provarei que mesmo o feio pode ser belo a sua maneira.” <br />
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Curto? Pois é, foi o mais próximo que aquele garotinho chegou de realizar o seu sonho de gerar o seu próprio romance. Se eu fosse ele acho que teria desistido e abortado este sonho. Livros parecem dar mais trabalho que filhos, melhor não escrevê-los, mas se não escrevê-los como sabê-lo? <br />
Há muitos motivos para não ter escrito nada ainda, talvez porque é exigente de mais consigo, ou é inseguro, pode ser que a época não seja a mais apropriada, ele ainda não encontrou seu estilo, ou na pior das hipóteses não leva jeito pra ser um Autor, o que não é desculpa para deixar de publicar qualquer coisa, as livrarias e bibliotecas estão repletas de escritores funcionais. Qual o problema então?! Tenho uma hipótese, eu o observo a muito tempo e começo a desconfiar que aquilo que chama de sonho na verdade é uma obsessão. Bem, quem viver lerá.<br />
Por enquanto, ele segue seu caminho sempre tenso captando o mais sutil sinal poético por onde passa, colecionando palavras aqui e ali, experimentando combina-las aqui e acolá. Sua palavra predileta é “vulnerável” ela o faz se sentir invencível. Mas não se restringe a colecionar verbetes, também adota sentimentos feridos que topa em suas andanças. Ele apresenta a solidão de um à solidão de outro e forma um solidário. Ele costura corações partidos com fiapos de amor eterno, oferece abrigo a uma palavra amiga e colhe os frutos da união. E do ódio virado pelo avesso faz uma paixão, da ilusão esperança e da morte ressurreição. Mas nada o comove mais que um sonho abandonado na sarjeta, seja novo ou antigo, sempre desnutrido e com frio. Ele tem um lugar especial em suas histórias para cada dádiva ou maldição que encontra no mundo. Um lugar em construção que um dia abrirá para visitação.<br />
A Musa parece ignorá-lo, mas ele é paciente e irá esperá-la o quanto for necessário. Ele começa a polir o texto a sua frente, limpando o de cada adjetivo desnecessário, livrando das incoerências, ávido para vê-la através da página. O meu menino vê sua silhueta sob a mais profunda camada do texto e continua a polir para descobri-la. E ele a chama.<br />
Mas ainda não será hoje que escreverá um livro que traduza seus pensamentos, expresse seus sentimentos e liberte seu espírito. Um livro cristalino que reflita a beleza interior sua e de seus leitores. Um livro digno de seus olhos.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-3018820852658264042009-09-05T09:10:00.001-03:002009-09-05T11:07:58.936-03:00Conto: O Amor de Odradek“A palavra foi concedida ao homem para disfarçar seus sentimentos.”<br />
Talleyrand<br />
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Hoje acordei com uma vontade louca de morrer, mas só um pouquinho. As oito a Novela continua e o que seria dela sem mim? E esse sentimento que não pára! Agitou-se dentro da minha cabeça, fez trouxa da minha alma, revirou a noite toda, estômago e travesseiro; ela dilacerou meu coração e amanheceu presa na garganta – uma bagunça. Vou levá-la ao doutor, ele dirá o que a tem incomodado.<br />
No consultório fui informado que o problema sou eu, o que fazer? Qualquer coisa receitou o doutor, essas dores passam, queira ou não, passam, mas ficarão os rastros. <br />
Levei o meu sentimento para assistir corridas de hipopótamos, foi divertido, mas demorado. Já era hora de almoçar e o sentimento me sugava. Peguei meu carro e fui para um lago fora da cidade planejando afogar meu sentimento, mas ele me cegou e rolamos por uma ribanceira. <br />
Eu não morri, porque quedas não matam quem sobrevive a uma paixão como esta. Pedi ao meu novo doutor que extirpasse o sentimento de mim, mas ele explicou que era eu que não queria largá-lo e me enviou a um padre. O seu caso é sério, recomendo um belo casamento – me disse.<br />
Casei e o sentimento morreu. Eu o enterrei no peito e agora sigo a deriva no que se convencionou chamar de vida, certo de que poeta bom é poeta morto.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-61690521808927544922009-09-05T09:09:00.000-03:002009-09-05T09:18:32.421-03:00Conto: Old Woman River...“– Às vezes me arrependo de ter conhecido você – eu disse. – Não gosto de dizer isso, mas é a verdade. Antes de você eu não sabia como era estar perto de gente deprimida. <br />
(...)<br />
– Estou cansada de viver e tenho medo de morrer – Glória disse.<br />
– Ora, essa é uma idéia legal para uma música – disse James Bates, que escutou tudo. –Você podia compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você podia chamar de Old Man River...”<br />
Mas não se matam cavalos?<br />
Horace McCoy<br />
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“A mente humana é um rio por vezes turbulento que deságua em si mesmo. Portanto, não se espante se ao tentar compreender alguém se sinta preso em um turbilhão, pois se lembre que você também és um rio, turbulento ou não.”<br />
Hermes Locke<br />
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Uma coisa não se pode dizer de Ofélia, que não fosse determinada. Prova disso foi o episódio da ponte, na qual demonstrou muita determinação em se conservar viva. Os detalhes a seguir me foram cedidos por um conhecido da equipe forense que investigou o caso.<br />
Na noite de sábado passado, por volta das onze horas, Ofélia, solteira de 39 anos, operadora de telemarketing, residente de uma kitnet no Centro foi vista saindo de seu prédio com uma sacola de feira indo a pé à ponte que liga o Centro com o “Bairro do Socorro”. <br />
Em sua residência não foi encontrada uma carta de suicídio propriamente dita, mas os escritos de seu diário revelaram claramente que sofria de depressão. Segundo o diário houve tentativas anteriores de suicídio comprovadas após consultarem seus registros médicos. <br />
Os investigadores forenses também descobriram um fragmento de papel queimado onde se podia ler somente: “...no fim da estrada encontro uma placa de Pare...” o que poderia ser tanto o trecho de uma canção ou de uma carta de suicídio. Especialistas trabalham na recuperação do restante do bilhete confiantes que ele revele o que desencadeou a fatalidade. <br />
Outra pista que auxiliou na reconstrução dos acontecimentos foi encontrada no lixo de sua residência; um comprovante de compra da “Maratona”, loja de artigos esportivos, em que constava a corda de nylon e o alteres empregados na tentativa de suicídio. O atendente da loja se lembrou da venda feita a Ofélia na tarde daquele mesmo dia. Ela havia lhe pedido dois metros de uma corda barata, mas resistente e um peso de trinta quilos que ela levou embora com aparente dificuldade. <br />
A família e os conhecidos de Ofélia informaram que desde a infância ela era uma pessoa desmotivada e de baixa estima, não tinha ânimo para lutar por seus sonhos que, aliás, se os tinha não manifestava. Infelizmente, como seu estado melancólico não chegava a incomodar terceiros sua condição emocional precária foi negligenciada por todos ao seu redor. Quando teve suas primeiras crises graves chegando a tomar overdoses de antidepressivos já vivia isolada e incomunicável impossibilitando uma intervenção. Os vizinhos a descreveram como aérea e incapaz de ferir uma mosca e, portanto, não fosse pela câmera de trânsito ter flagrado o salto, tomariam por um boato maldoso.<br />
Na segunda à noite um jornal sensacionalista exibiu um resumo da gravação feita pela já citada câmera de vigilância. A imagem era preta e branca e não enfocava o ponto de onde Ofélia saltou, pegando-o de relance. As sombras também dificultavam a visão, mas com ajuda de truques de edição o jornal aperfeiçoou a gravação. <br />
O relógio digital no canto inferior esquerdo da tela marca 23:11h quando Ofélia surge caminhando até o meio da ponte. A vemos pular a barreira de segurança, tirar a corda e o peso da sacola, amarrar a corda no peso e testar o nó balançando o peso como um pêndulo, o nó foi aprovado. O próximo passo foi enrolar a outra ponta da corda no pescoço e erguer o peso acima da cabeça para lançá-lo no rio. Mas o alteres deve tê-la desequilibrado derrubando-a da ponte um segundo antes do planejado. A gravação não dispunha de som, mas dava para imaginar que Ofélia despencou gritando e que seu grito foi cortado de repente quando se viu pendurada na ponte. Ao cair de suas mãos o peso se prendeu numa saliência da ponte enforcando Ofélia com a corda.<br />
Especialistas alegam que foi um milagre não ter quebrado o pescoço, mas aquele foi apenas o segundo de uma série de milagres, de certo que o primeiro foi o peso ter escapado de suas mãos ou a teria arrastado para o leito do rio. O terceiro milagre foi ter sobrevivido por dois minutos pendurada pelo pescoço a se debater no ar. A gravação saltou no tempo para que não fossemos obrigados a testemunhar cada segundo do estrangulamento de Ofélia. E por mais que se esforçasse sabíamos que ela não se livraria da corda, mas ao final dos dois minutos a corda se soltou do peso e Ofélia foi engolida pelas águas negras do rio. Foi o quarto milagre.<br />
Havia chovido muito naquele dia e o nível do rio aumentara quase um metro. A água parecia petróleo e mesmo pela gravação podia se perceber uma quantidade abundante de lixo na superfície. Caso Ofélia não morresse afogada, morreria intoxicada. Mas nem uma coisa, nem outra. Após segundos de suspense a suicida ressurgiu nadando rumo a uma das margens. Conhecidos haviam garantido que Ofélia não sabia nadar, que se quer havia entrado em uma piscina em toda a vida. Neste caso estávamos diante do quinto milagre. Porém, o round mais emocionante em sua luta pela sobrevivência ainda estava por vir. <br />
Quando Ofélia alcançou a margem e tentou se levantar coberta de lodo caiu de costas rolando de volta para o rio. Provavelmente a corda ainda presa em seu pescoço enroscara em um tronco, um pneu ou nos dedos da Morte. E por mais três vezes tentou sair do rio, mas este a puxava de volta em um jogo macabro de cabo de guerra, de um lado o Rio turvo e gigantesco e do outro, Ofélia, a mulher mais fraca e desmotivada do planeta. Pois na quarta tentativa ela o venceu caindo de boca no barranco enlameado que margeava o rio. O sexto milagre.<br />
Nós vimos à mulher escalar o barranco e se deitar de costas sobre uma moita de capim navalha, planta que cobre as margens do rio. O seu corpo não se movia o que nos fez pensar que havia nadado tão bravamente para morrer de exaustão. De súbito um espasmo, ela respirava, arfava, vivia! Os movimentos de seu peito se estabilizaram e nós a acompanhamos se arrastar para fora do campo de visão da câmera.<br />
O ancora que comentava a gravação disse que aquela foi uma lição de perseverança para todos em casa que seguiram a odisséia de Ofélia. Mas o melhor estava por vir, enfatizou com um tom melodramático.<br />
Passaram uma nova gravação parecida com a anterior, contudo, o relógio digital marcava vinte minutos depois. Vimos à mulher retornar ao ponto do qual caiu e amarrar a corda novamente no alteres e no pescoço. Nós bem apertados, mergulhou de cabeça abraçada ao peso. Passaram-se os minutos e nada veio à tona. O rio seguia seu curso indiferente, e nós o nosso confusos.<br />
Os mergulhadores prosseguem com a busca. Mas Ofélia parece determinada a não ser encontrada.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-45463482079665085692009-09-05T09:08:00.000-03:002009-09-05T09:19:15.856-03:00Conto: A Dama do RefeitórioFoi uma daquelas experiências constrangedoras que nos pegam desprevenidos. Eu não esperava encontrar ninguém em especial ao ir almoçar no restaurante da faculdade. Meu plano era simples: engolir a refeição e correr para o alojamento e preparar o seminário de lingüística que estava atrasado. Mas o Destino decidiu improvisar comigo; ele tinha que coloca-la diante de mim para atrapalhar o meu dia. Aqueles foram 44 minutos que não desejaria nem para meu maior inimigo. <br />
Ela se aproximou com um grupo de amigas segurando bandejas fumegantes. <br />
– Meninas me desculpem, mas acabei de ver um amigo com quem não fa...<br />
– Tá certo Júlia. A gente entendeu – cortou uma de suas colegas com cinismo.<br />
– Tenha um bom almoço com seu amigo – disse outra pontuando a frase com uma piscadela.<br />
A Júlia respondeu aos comentários com um palavrão dito baixinho e que provocou risinhos em suas colegas que se afastavam de minha mesa. Eu ainda não sei por que me dei ao trabalho de apurar os ouvidos e ouvir a conversa delas. Devo ter pressentido o constrangimento pairando no ar.<br />
– E aí? Como vai? – disse a Júlia de pé ao meu lado.<br />
– Bem – respondi secamente. <br />
– Posso me sentar com você?<br />
– Sim.<br />
Ela se acomodou e iniciou um dialogo unilateral comigo; no qual eu não passava de um muro que rebatia seus comentários com “sim, sim, oh não, sim, sim” dissimulados. E a partir do instante em que a Júlia começou a falar não lembro de ter comido mais. Eu também esqueci do horário e de minhas obrigações. A minha realidade se resumia aquela moça tagarela a minha frente. <br />
– Você mudou bastante desde a última vez que nos vimos – disse Júlia.<br />
– É – respondi.<br />
– Mas continua falante pelo visto – ela zombou.<br />
– É – respondi sorrindo.<br />
Ela sorriu por reflexo e pude ver quase todos os seus dentes que mereceriam ser descritos em versos se não estivessem tingidos pelo suco de groselha e enfeitados com fiapos verdes. Eu não sorri mais e ela me imitou para meu alívio, pois estava ficando zonzo com o movimento hipnótico de seus lábios.<br />
– Algum problema? – ela me perguntou apreensiva.<br />
– Nenhum – menti.<br />
– Certeza? Não quer me dizer nada? <br />
Eu queria sim, como queria. A pergunta coçava na minha garganta, mas não tinha coragem para proferi-la. Compreendam que eu era um rapaz extremamente tímido e especialmente na presença do sexo feminino. Mas era apenas a timidez que me emudecia, também havia a curiosidade de ver o que a Júlia faria a seguir.<br />
– Vamos, diga o que está te incomodando. Você sabe que pode confiar em mim – disse pegando as minhas mãos e segurando-as com força.<br />
O toque dela causou uma reação química sobrenatural me transformando em algo com a consistência de algodão doce.<br />
– Uau! Você virou um pimentão – ela sentenciou com um tom malicioso.<br />
– Não foi nada, acho que a comida está muito quente, só isso.<br />
– Mas você está beliscando sua salada e omelete faz meia hora – retrucou ainda mais maliciosa divertindo-se em me embaraçar.<br />
– Eu quis dizer que está apimentada demais. Como vai sua família? <br />
– Quê? Minha família? <br />
A Júlia ficou tão atrapalhada quanto eu ao ouvir a palavra família jogada de súbito sobre ela. No meu desespero por mudar de assunto devo ter tocado em um ponto delicado, dar chutes fora era minha especialidade.<br />
– Você sabe que eu não gosto de falar da minha família – disse magoada.<br />
– Desculpa, não tive a intenção de chateá-la.<br />
– Não sei não, você está esquisito. Pensei que ficaria feliz de me rever depois de tanto tempo, mas desde que sentei aqui você tem agido com frieza.<br />
Droga! Ela havia me posto contra a parede. Realmente havia algo errado comigo, sempre houve. Eu era o tipo de homem que se cala não hora em que deve falar, o tipo de cara que perde as boas oportunidades que a vida oferece. Se eu fosse um tiquinho corajoso teria desabafado tudo aquilo que me atormentava. Mas não, estava escrito que mais uma vez tentaria adiar meu inevitável triste fim.<br />
– Que tal falar sobre o meu ex ou do meu cachorro que foi atropelado na sexta série? – prosseguia Julia quase chorando.<br />
Enquanto isso eu me perdia em reflexões a respeito da dificuldade que temos em ser-mos francos quando necessário. Infelizmente, não pude impedir que a cena de um vira-lata de mochila sendo atropelado na saída da escola canina me provocasse um leve riso. Foi o suficiente para entornar o copo de cólera da moça. Ela se levantou e saiu do refeitório me acusando de ser insensível. Observei que ela não tinha recolhido a sua bandeja como mandava as regras da casa e conclui que era um pouco insensível sim. Mas minha insensibilidade não era o problema, o problema era eu não ter feito a maldita pergunta na hora certa. E se eu fosse totalmente insensível não teria corrido atrás dela para corrigir meu erro. <br />
O refeitório estava cheio e as pessoas achando que se tratava de uma briga entre namorados torceram por mim – por pura zombaria – quando sai disparado atrás da Júlia. Eu pensei “Merda! Minha paranóia agora virou histeria coletiva”. E realmente, meus colegas ainda se lembram da cena. E fora do refeitório a história atingiu seu ápice.<br />
Eu alcancei a Júlia já bem distante em uma alameda. Ela enxugava sua dor com um guardanapo de papel e resistiu em querer me ouvir. Eu tive que vencer toda minha timidez para prendê-la em meus braços e força-la a me ouvir. Nesse ponto acho que exagerei, mas como já dei a entender sou péssimo com as mulheres. <br />
– Júlia me desculpa pela forma como te tratei no refeitório, mas é que...é que...<br />
– É o quê?! Desembucha! <br />
Então eu abri as comportas e deixei que minhas palavras inundassem seus ouvidos desmanchando seus castelos de areia.<br />
– De onde mesmo que eu te conheço?<br />
O véu foi rasgado e pude ver a verdade e a vergonha se misturando nos olhos da moça que segurava a um beijo de distância. Ela me empurrou e antes que eu recuperasse o equilíbrio recebi um tapa nas fuças que cai em cima de um canteiro de rosas pontiagudas. Nunca mais a vi<br />
Bem feito para mim por não ter prestado atenção à canção e ter sido sincero como não se pode ser.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-56837749493667947752009-09-04T09:26:00.000-03:002009-09-04T12:28:47.451-03:00Conto: O RouboGalego era um santo e Dona Bela, a senhora sua esposa, duas vezes santa. O homem era pai de família, trabalhador e humilde, um exemplo para a comunidade. A mulher era benzedeira e com suas orações salvou muita criança doente. Resumindo, o casal era querido por todos no morro. Daí se compreende o alvoroço que se formou quando certa tarde de sábado Galego entrou arrasado no Bar do Tião exigindo uma dose de pinga.<br /> – Ocê enchendo a cara, negô veio!?! – um conhecido disse mais exclamando que indagando.<br />– Não perturba Janjão. Me deixa! – respondeu Galego virando um copo. – Outro. – exigiu.<br />– Tem certeza? Ocê não é de beber Seu Galego. – disse o atendente do bar.<br />– A única coisa que tenho certeza nessa merda de vida é que quero mais uma dose droga! – gritou Galego batendo o copo vazio no balcão com força.<br />– Calma companheiro, conta pra gente o que se passa? – perguntou outro conhecido.<br />- Parece até que viu o demônio ou que acabou de ser assaltado. - comentou um velho amigo.<br />– Pior! Roubaram a Bela, porra!<br /> No canto pararam de jogar sinuca e moço do churrasquinho esqueceu da carne. E alguém desligou a TV no meio do jogo tamanho a gravidade da notícia. <br /> – Não pode ser, Galego. Quando e onde foi isso? – alguém perguntou revoltado.<br /> – Aqui mesmo no morro enquanto eu trabalhava. Acabei de saber. – informou Galego caindo no choro.<br /> Alguém perguntou se a mulher tinha sido apenas roubada ou algo mais e levou peteleco pela indiscrição. Mas entre soluços e agora abraçado a um vizinho Galego balbuciou que haviam feito de tudo com esposa. A indignação no bar atingiu o nível máximo. Perguntaram também se ela estava sozinha e onde exatamente aconteceu a tragédia. Quando Galego chorou que foi na própria casa e na presença dos filhos e que foram estes que o informaram da desgraça teve quem o acompanhou no choro.<br /> – E ocê sabe quem foi o filho da puta que fez isso com tua esposa? – perguntou o dono do bar tirando uma arma debaixo do balcão. <br /> – O Genário. – respondeu Galego mastigando o nome.<br /> – O Genário da banca de jornal? – perguntaram incrédulos.<br /> O povo esperava que fosse um nóia ou mesmo um traficante. Um tranqueira qualquer, mas o Genário era quase tão gente boa quanto o Galego e a Dona Bela, além de serem amigos, o que acabou revoltando o grupo em dobro. E como o Galego confirmou que o criminoso era o Genário e como ele nunca mentia a marmanjada catou os tacos de sinuca e desceu o morro.<br />Pelo caminho o grupo de lixamento ia engrossando e quando chegaram na banca já era uma passeata. Não encontraram o infeliz e moeram a banca e queimaram o que sobrou. Estavam ensaiando o que fariam com o crápula que havia feito mal a Dona Bela, que na empolgação de lixar ninguém se lembrou de perguntar se passava bem, mas bem é que não podia estar. <br /> Quando chegaram na casa do Genário gritaram que o judas saísse que era sábado aleluia no morro. Mas quem saiu foi a Dona Bela, você ouviu direito, Dona Bela, sim senhor, ela apareceu um tanto constrangida e um tanto brava.<br /> – Que zona é essa?! – perguntou a mulher para o povaréu atônito. – Já sei, foi o frouxo do meu ex que foi pedir ajuda pra me arrastar de volta pra casa, não é?<br /> – Desculpa, mas a senhora não foi roubada hoje pelo Genário? – alguém perguntou.<br /> – Quem foi roubado foi o bunda mole do Galego. Ocês são tontos ou o quê?!<br /> O povo injuriado espremeu o Galego até não sobrar sumo.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-34104194880893066522009-09-04T09:22:00.000-03:002009-09-04T09:32:48.330-03:00Conto: O Tempero SecretoCarlos estava arrependido e disposto a corrigir sua falta. Mas no fundo sabia que não havia desculpa pela traição. Não importava o que fizesse sua esposa não se esqueceria da forma como ele a recompensou pelos seus noves anos de dedicação matrimonial. Chifre dado era chifre fincado, pode-se cerrar, mas a raiz é profunda, atravessa o cérebro, entala na garganta e atinge o coração. Carlos tinha certeza disso, pois fosse o contrário, tivesse ele pego a doce Laurinha derretendo-se na língua de outro no leito conjugal e teria tingido o lençol de sangue. Ah se teria! Assim pensava Carlos no elevador munido de um ramalhete, mas desprovido de esperanças.<br />A porta do elevador se abriu e outra ameaçadora despontou no final de um corredor. O número 504 indicava que era o seu velho apartamento, no qual ele compartilhou os melhores anos da sua vida com a melhor das mulheres, esposa fiel e mãe de seus filhos. Ele cambaleou pelo corredor de cabeça baixa sob o peso da culpa tropeçando na vergonha que enroscava em suas pernas. Graças a deus as crianças estavam visitando os avós quando Laurinha o expulsou de casa e escarrou o divórcio em sua cara. Contudo, isto foi ontem, e por telefone a esposa havia dito que os filhos ainda não estavam sabendo da briga. Sim, ela havia ligado. Pelo visto, não era da natureza daquela mulher guardar rancor, pois na manhã seguinte ligou convidando seu marido para conversar, mas à noite, na hora da ceia.<br />Laurinha atendeu de pronto a primeira batida de Carlos na porta. O sujeito esperava um banho de água fervente nas fuças ou um tiro com o 38 que guardava em casa, apesar de sempre temer que arma um dia fosse usada contra um membro da família. Mas nem vapor, nem fumaça. O que recebeu foi um “oi” caloroso a queima-roupa que quase o derruba de tão inesperado. Ele se recompõe rápido e disfarça o embaraço oferecendo as flores para Laurinha que agradece sorrindo. <br />Carlos foi levado para a sala de jantar onde uma refeição quente e acolhedora o aguardava. As lâmpadas estavam apagadas e a pouca claridade fluía de duas velas postas na mesa. O homem lutou contra os aromas e tons que entorpeciam seus sentidos e quis discutir a relação com a esposa antes da ceia, mas a mulher insistiu que comessem primeiro. Ela disse que de estômago cheio o coração pensava melhor e foi a cozinha pegar uma garrafa de vinho para refinar ainda mais os pensamentos da nobre víscera.<br />Entre a ida e a vinda de Laurinha, Carlos teve tempo de refletir sobre como sua mulher o surpreendera. Talvez, tivesse subestimado o amor dela e sua capacidade de perdoar. E tal idéia fez brotar uma fonte inesgotável de esperança em seu peito. Estaria seu casamento salvo e sua família preservada? A carne banhada em molho madeira a sua frente dizia que sim.<br /> Mas antes que Laurinha retorna-se com a garrafa uma coisa úmida e áspera correu por uma de suas mãos. Era seu cãozinho Serelepe que cabia inteiro na boca de um pastor alemão. O bichinho ganhou um pedaço de carne e começou a mastigá-lo encolhido entre os pés do dono. Ele não devia dar carne para o cãozinho por muitos motivos, mas principalmente porque irritava sua esposa, portanto torceu para que o bicho comesse quieto e não o denunciasse. <br />Quando Laurinha retornou trazia uma garrafa aberta e uma taça já cheia que ofereceu ao marido. Ela sentou também e cortou o discurso de Carlos que lhe pedia perdão e se vangloriava que ele, um pecador, tinha uma santa em casa. Laurinha acalmou de vez o coração de Carlos ao garantir que estava tudo bem, e deu a entender que o amor dela não havia morrido com o golpe traiçoeiro do marido. Carlos se calou certo de que sem dúvida alguma não merecia aquela mulher. Merecia era morrer por ter machucado um ser tão dócil, merecia morrer da pior forma possível, assim acreditava, mas ironicamente sua traição era paga com um banquete. Pois não comeria, ao menos isso. Não merecia provar nunca mais dos manjares de Laurinha.<br />A mulher se inquietou com a recusa do marido em provar do prato que esfriava e da taça que esquentava. Alegava que havia posto todo seu amor naquela ceia e ele a ofendia se recusando a comê-la. Porém, Carlos estava convencido que não era digno de tanto amor e consideração. Isto até que o pobre Serelepe saiu debaixo da mesa tossindo e se retorcendo. O cãozinho caiu de lado inchado a ponto de estourar e enquanto tremia como se estivesse ligado a uma tomada punha todo o sangue do corpo pra fora por quantos orifícios tivesse. <br />O casal assistiu a cena que não durou mais que um minuto sem pronunciar uma palavra. Os sorrisos que traziam nos lábios caíram no chão e eles puderam ouvi-los se espedaçar. Estilhaços devem ter acertado os olhos de Laurinha, pois uma hemorragia de lágrimas borrou sua maquiagem. Carlos mordeu os lábios, respirou fundo e silenciosamente levou uma garfada à boca, mastigou tranquilamente e engoliu. Depois tomou um gole do vinho e se serviu de mais uma fatia de carne. E depois outra e outra sem nunca tirar os olhos da esposa que continuava a chorar. <br />Carlos tinha concluído que merecia sim aquela ceia que cheirava a ressentimento.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-16832620590672278582009-08-31T10:23:00.000-03:002009-09-04T09:33:52.147-03:00Conto: Pais RomânticosRomeuzito havia perdido o apetite no dia em que os novos vizinhos mudaram para a casa ao lado. E os pais desconfiaram que a responsável pelo adoecimento do guri fosse uma rosa do jardim ao lado; pois o casal reparou que a família recém chegada tinha uma princesinha de doze anos. A qualquer hora do dia que a encontravam, fosse brincando na calçada, no shopping ou na saída da escola, a menina estava impecável de vestido florido e sapatinhos lustrosos. As flores da fazenda mudavam diariamente, assim como a cor dos sapatos. Apenas o perfume doce e suave permanecia inalterado.<br /> Os pais do Romeuzito se apaixonaram pela menina a primeira vista e, portanto, compreendiam que com o filho o encanto da jovem vizinha seria ainda mais intenso. E também sabiam por experiência própria que o amor não poupa nem mesmo crianças de doze anos. E mais, não havia essa de amor inocente. O amor é cruel e traiçoeiro e quanto mais vulnerável o coração, mais impiedoso é o sentimento. E tudo indicava que o filhinho deles era a mais recente vitima do Cúpido no bairro.<br />Com o passar dos dias o apetite do menino piorou e ele não falava mais. Na hora das refeições era com muita relutância que engolia duas ou três colheres de qualquer coisa e nenhum pio. Não assistia mais desenhos, perdera o interesse pelos gibis e games. Não pedia mais por passeios no shopping, praia ou cinema. Sua vida era ir à escola de manhã com evidente má vontade, retornar a tarde e se confinar em seu quarto.<br /> A janela do quarto dava para o quintal da casa vizinha o que colaborava para a tese dos pais de que o filho passava a tarde observando a amada. O pai até tentou ter uma conversa de “homens” com o filho, mas só conseguiu gaguejar na hora. A mãe, muito mais pratica recorreu a uma estratégia drástica: convidou os vizinhos para um churrasco. Ela lançaria o filho na cova da leoa e torceria para que seu homenzinho resolvesse seus problemas amorosos por conta própria.<br /> O Romeuzito foi quase tão enfeitado para o churrasco quanto à menina. Um perfeito casal em miniatura de bolo de casamento. Infelizmente, o garoto não se mexia nem falava, ignorando completamente a presença de sua julieta. Os pais desesperados tentaram incentivar a menina a puxar conversa com o filho deles. “Peça a ele para te mostrar seus troféus de judô”. Mas a menina achou melhor não perturbá-lo e alertou aos adultos que o garoto estava encharcado de suor e branco com um fantasma.<br /> Uma hora depois os pais recebiam um pito no corredor de um hospital. Uma médica queria saber como os dois não foram capazes de perceber que o filho estava doente. Segunda a doutora a criança sofria de uma infecção generalizada, mas tratável. <br /> No final o Roemuzito escapou sem seqüelas e vive bem e ainda solteiro aos doze. Quem não escapou ileso foi o orgulho de seus pais. E para diminuir o mico diziam um para outro que o filho levava a sério demais esse lance de morrer de amor.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-961461324767776772.post-52084026945589132802009-08-28T09:42:00.000-03:002009-09-04T09:34:17.803-03:00Conto: O Aparelho de TorturaAinda não compreendo como sobrevivi àquela tarde. No início, logo após acordar, pensei que tudo não passara de um pesadelo. Mas a dor que despertava e se espalhava pelo meu rosto era bem real. Não pude conter as lágrimas que saiam à medida que as lembranças chegavam. Devagar o quadro funesto tomava forma em minha mente. Lutei para manter as horas malditas aprisionadas em meu inconsciente, mas elas romperam o bloqueio mental e desceram quentes pela minha face.<br /> Lembro que me trouxeram a força em um carro. Eu perguntei ao homem que dirigia, meu próprio pai, para onde estava me levando. “Você sabe” dizia sem desviar o olhar do trânsito. Sim, eu sabia. Eu sabia para onde ia e o que esperava por mim. Não seria minha primeira vez, talvez com sorte eu não sobrevivesse e fosse a última. E nunca mais eu seria submetido à dor e a humilhação. <br /> Já fazia cinco anos que ao menos uma vez por mês era pego, colocado no mesmo carro e levado ao mesmo endereço. Meu drama não era nenhum segredo e expunha minhas cicatrizes em público sem pudor algum.Todos na cidade sabiam o que estava acontecendo e meus colegas zombavam de mim. Mas ninguém fazia nada a respeito. Não era problema deles. Não se importavam comigo, não havia motivo para tanto, pois o sangue derramado não era deles e nem dos seus, mas de um completo estranho. Não os reprovo, eu também preferiria que outro houvesse me substituído em meu calvário. <br /> Eu já havia desistido de resistir, não gritava e não me debatia mais, apenas seguia meu pai pelo corredor até o cubículo de sempre. Atravessar aquele corredor era como adentrar em meu próprio corpo e encarar os vermes que esperam ansiosos para devorar-me a carne. Quem me dera tivesse o consolo de uma venda que desnorteasse meu temor, que me desse tolas esperanças de que desta vez seria diferente, que atrás da maldita porta me aguardasse um bolo de aniversário, um filhote peludo ou ao menos um buraco negro para me tragar. Mas não, do outro lado, o pesadelo outra vez.<br />O cubículo era uma ratoeira sem cor com uma cadeira dura e fria posta no centro. Era o meu trono, meu lugar de honra na mesa. Meu anfitrião na câmara dos horrores era um homem branco como um espírito desencarnado usando uma mascara que deixava apenas seu olhar homicida de fora. Ficávamos a sós para os seu deleite. E enquanto ele se divertia as minhas custas, eu fugia flutuando para longe soprado pelo vento como uma folha morta. Pobres músculos e ossos que não tinham escolha e eram forçados a participar passivamente dos jogos sádicos de meu algoz. <br />Às vezes a sessão durava meia hora, quarenta minutos; às vezes mais. As agulhas trabalhavam em meus nervos e as pinças beliscavam a massa vermelha e pulsante do meu ser. O cheiro do ácido corroia minhas narinas e a luz forte queimava minhas retinas. A posição que eu era obrigado a ficar somada ao ranço das substâncias estranhas que escorriam por minha garganta abaixo me causavam náuseas. O pior era não poder gritar, não poder manifestar o horror de ver partículas de cálcio voando pela sala, meus ossos pulverizados subindo como vapor da minha boca muda, vazia de linguagem e transbordante de asco. <br />Era tão vasta a variedade de ferramentas que desfilavam pelo meu rosto. Seus nomes eram misteriosos e exóticos como o nome de demônios. Brinquedos frios e afiados que me desfiguravam, exploravam, desmontavam e remodelavam. O carrasco acocha os arames e meus dentes trincam, mais um pouco e extrairia minha alma pela raiz. Na hora sentia apenas medo, o resto era paralisia. A dor física vinha depois quando retornava de meus devaneios ou despertava de um abençoado desmaio como desta vez. Mais tarde vem a humilhação.<br />Eu apalpo meu rosto e meus dedos não encontram a máscara de ferro. Seria possível que tivessem removido meu maior suplício? Corra ao banheiro e contemplo minha imagem no espelho livre da parafernália de arames e ganchos. Oh, meu Deus! Teria terminado a era do cabresto de elástico, lábios lacerados e dentes doloridos? Minha gengiva nunca mais sangraria e as pessoas não zombariam mais de mim?<br />O garoto no espelho chora de alívio. E antes que eu vá confirmar com meus pais se os passeios ao dentista estão encerrados dou uma bela examinada no sorriso. Dentes perfeitos, vida refeita. Saio satisfeito e convencido de que o sacrifico valeu a pena.MLMAnjoshttp://www.blogger.com/profile/06496074325286040828noreply@blogger.com1